Num contexto em que o sector cultural, nomeadamente o museológico e patrimonial, acumula perdas em todo o mundo (Raposo, 2020), acentuando a fragilidade da sua suborçamentação e subfinanciamento de décadas, importará refletir quer sobre a forte exposição dos fluxos turísticos e por conseguinte a dependência financeira destes e a necessidade de tornar à lógica da sua vocação para o qual o museu moderno foi concebido, enquanto repositório da memória da comunidade em que se insere e se dirige, conseguindo dar a essa memória uma universalidade e intemporalidade. Queremos museus que sejam espaços cívicos, de participação e debate.
Segundo Raposo (2020), por força da atual crise pandémica, em “Itália o sector cultural espera uma perda de 3 mil milhões de euros durante o próximo semestre; e em Espanha, essa perda será de 980 milhões de euros só neste mês de Abril.” Os novos constrangimentos a que assistimos, se não forem acompanhados de um tendencial investimento quer público, quer privado poderão constituir razão da deterioração da qualidade da democracia cultural e do acesso livre aos bens culturais, assim como acentuar a precariedade dos profissionais do setor, nomeadamente os artistas, formadores, mediadores culturais, curadores e programadores, entre tantos outros. O governo federal Alemão, através do Ministério da Cultura, anunciou 50 mil milhões de euros para apoio a artistas e empresas que trabalham na área cultural (Carita, 2020) e o Ministério da Cultura Francês, 22 milhões (Lopes, 2020), o que contrasta com a insuficiência de cerca de 1 milhão de euros, anunciados pelo governo português, mesmo tida em consideração a proporcionalidade do sector em Portugal. Segundo os dados disponíveis, Portugal é o quinto país da União Europeia que menos emprega no sector da cultura. Os trabalhadores nesta área eram 2,3% do total em 2015 (Costa, 2019), talvez por essa razão o sector não seja tido com relevância na decisão política de sucessivos governos.
Persiste, no entanto, desde há várias décadas, a falta de dotação financeira dos museus e de maior autonomia na gestão e programação. Persistem as necessidades veementes de conservação e restauro dos acervos e coleções e da dotação de mais recursos humanos, com a devida formação técnica especializada. Perante esta escassez, anunciam-se, no entanto, novos museus, plenamente descontextualizados da realidade em que se inserem ou subvertendo a lógica de conceção do Museu e do lugar que este ocupa na contemporaneidade (Goes, Cultura em tempos de engate, 2019).
Segundo Raposo (2020), a importância da participação do cidadão nas práticas culturais deve ser mais do que uma justificação da dinamização económica – ou da atração turística – como é demonstrada num inquérito do Eurobarómetro sobre como vêem os europeus os museus e o património cultural: nomeadamente no segmento jovem, quase três quartos refere que escolhe o destino de férias, tendo em conta o património cultural e mais de quatro quintos desejaria ver introduzido nos currículos escolares o ensino dos temas patrimoniais. E setenta e quatro por cento considera que os poderes públicos nacionais deveriam investir mais em património cultural, refere Raposo (2020).
Se é certo que nos últimos cinco anos, registamos em várias estatísticas, um progressivo aumento do número de visitantes nos museus quer a nível nacional, como regional – na Região Autónoma da Madeira – assistimos já uma inversão a partir de 2017 – e está ainda por demonstrar e quantificar quais os reais impactos quer do turismo, quer das apregoadas políticas de democratização do acesso à Cultura (Goes, Barraca no Presépio, 2020). Na globalidade dos Museus na R.A.M. registou-se em 2018, um decréscimo de -19,6% em relação a 2017 (263 mil). Também nas galerias de arte, realizaram-se menos exposições (-8,9% em relação a 2017) e expuseram-se menos obras, enquanto os cinemas e espetáculos ao vivo também registaram quebras nos espetadores (DREM, 2019). O que poderá ser revelador quer da forte dependência dos fluxos turísticos (63 ,2% dos visitantes são estrangeiros), quer do próprio abrandamento económico que o sector já revelava, agora acentuado pela atual crise pandémica.
Quando comparamos outras regiões, com determinadas especificidades e características de forte atração turística, mesmo estabelecendo apenas uma relação empírica, nomeadamente entre a Madeira e os Açores, uma vez que possuem comuns especificidades geográficas – regiões ultraperiféricas atlânticas, da macaronésia – notamos que, com base nos dados disponíveis pelo INE (2018), os Açores apesar de disporem (ou terem identificado) menos museus em funcionamento do que na Madeira, se relacionarmos outros indicadores, os Açores que possuem menos população residente e menos turistas do que a Madeira, conseguiram no entanto, registar mais 50.621 visitantes nos seus museus, do que a totalidade dos Museus na Madeira (Fonte: INE, 2018). O que poderá revelar uma clara aposta na participação das comunidades residentes, nomeadamente através dos serviços educativos, conclusão esta empírica, a partir da interpretação dos dados disponíveis. Notamos, contudo, que os dados disponibilizados possam não ser coincidentes nos critérios de elegibilidade, ou na própria definição de espaço museológico. Do mesmo modo, poderão ser distintos os critérios de contabilização dos visitantes. Por verificar estará os impactos, da gratuidade se experimentada em alguns desses espaços museológicos.
Como refere Bina (2020), “os estudos têm mostrado que a gratuitidade efetivamente funciona para atrair mais visitantes, mas não para democratizar a cultura, já que os frequentadores, nessas oportunidades, costumam ser aqueles que já têm essas práticas culturais como hábito.” A mesma autora considera, a partir de análises sociológicas, que “o interesse e a fruição do património ainda é socialmente restrito (…) limitado às classes médias e altas, sobretudo urbanas e bem qualificadas”.
“Um dos maiores fracassos nas sociedades ocidentais do pós-guerra foi a democratização da cultura. Pensou-se que, ao abrir muitos museus por muitas horas e com grandes obras, graças ao dinheiro do Estado, muita gente nova se juntaria às visitas, mas não foi assim. Quando se presta atenção, ao longo do tempo as pessoas que vão aos museus são as mesmas de sempre: gente de um certo nível educacional. Os camponeses e os operários da construção em geral vão pouco.” (Lipovetsky, 2020)
Bina (2020) considera que “(…) a gratuitidade é um fator de atratividade, parece importante associá-la a outras propostas para ser uma efetiva ferramenta de “democratização cultural”. Nomeadamente, o uso de recursos e ferramentas de marketing cultural digital, tecnologias digitais interativas, realidade virtual aumentada, associadas a uma interpretação patrimonial, com rigor e precisão científica pode constituir fator de atratividade.
Estes recursos devem estar associados ao uso de uma linguagem adequada, articulada com a visita presencial, personalizada, preferencialmente adaptada às especificidades e interesses de cada visitante (Bina, 2020; Goes, 2020). Quando terminar a situação de confinamento social, os museus estarão muitíssimo mais dotados de recursos digitais do que quando nela entraram (Raposo, 2020).
Lipovetsky (2020), manifesta-se contra, projetos culturais grandiosos – pela escala e dimensão do edificado e mobilização de recursos financeiros – pois como refere a intemporalidade e monumentalidade desses projetos, nomeadamente os museológicos fá-los acabar na “star system”. Melhorar as infraestruturas culturais das pequenas cidades – ou nos espaços rurais – e melhorar as condições de habitabilidade, dinamização social e cultural dos subúrbios, nas periferias das grandes, poderá potenciar um melhor desenvolvimento social das comunidades e potenciar uma verdadeira democratização cultural – num sentido concreto e não abstrato (Goes, 2020; Lipovetsky, 2020). “Trata-se de mobilizar pintores, escritores, músicos para que ensinem as pessoas a fazer coisas enriquecedoras, especialmente as crianças, como atividades extracurriculares” (Lipovetsky, 2020).
A gratuitidade no acesso aos bens culturais deverá ser por isso uma questão de princípio, não dependente de uma visão economicista da sociedade, que coloque em causa o desenvolvimento social. A este propósito, um dos exemplos, que pode ser tido em consideração é o sucesso da iniciativa “Cultura para todos!” iniciada em 2017, decorrente do Orçamento Participativo desse ano, que será continuada a partir de abril deste ano, conforme o despacho n.º 2880/2020 (publicado no Diário da República n.º 45/2020, Série II de 2020-03-04).
Este despacho vem possibilitar que “Doravante, todos os cidadãos residentes em território nacional, no ano civil em que perfazem 18 anos, podem visitar gratuitamente museus, palácios e teatros nacionais, bem como os demais equipamentos ou atividades asseguradas pelos serviços e organismos sob direção, superintendência e tutela da Ministra da Cultura”.
Se a Constituição da República Portuguesa consagra no seu artigo 9º alíneas d) e e), como tarefa fundamental do estado: promover a efetivação “dos direitos culturais” e “proteger e valorizar o património cultural”, respetivamente, também nos artigos 42º e 43º, o princípio da liberdade de criação cultural e de ensinar e aprender. A nossa Constituição também consagra no seu artigo 13º, o Princípio da Igualdade, condenando deste modo racismo e xenofobia no seio da nossa sociedade.
Quero notar, sobre o quão relacionados estão estes artigos, uma vez que, promover mais Educação, mais Cultura e mais Arte, realizando uma verdadeira democratização cultural, poderá ser o melhor instrumento de combate ao racismo e xenofobia que tem vindo a se disseminar na sociedade ou que talvez nunca tenha deixado de existir (Goes, Nós somos os outros, 2020).
Referências
Bina, T. (2020, Março 2). Património gratuito, património pago: a democratização da cultura e políticas de gestão. (C. Gonçalves, Ed.) Obtido em 17 de Maio de 2020, de Patrimonio.pt: https://www.patrimonio.pt/post/património-gratuito-património-pago-a-democratização-da-cultura-e-políticas-de-gestão
Carita, A. (2020, Março 26). Alemanha disponibiliza 50 mil milhões de euros para a Cultura. E em Portugal? Expresso. Obtido em 17 de Maio de 2020, de https://expresso.pt/coronavirus/2020-03-26-Alemanha-disponibiliza-50-mil-milhoes-de-euros-para-a-Cultura.-E-em-Portugal-
Costa, R. M. (2019, Maio 3). Os portugueses e a cultura: o emprego é pouco e o interesse também. Público. Obtido em 17 de Maio de 2020, de https://www.publico.pt/2019/05/03/infografia/portugueses-cultura-emprego-interesse-tambem-315
DREM. (2019, Dezembro 4). estatistica.madeira.gov.pt. (D. R. Madeira, Editor) Obtido em 17 de Maio de 2020, de Direção Regional de Estatística da Madeira: https://estatistica.madeira.gov.pt/download-now/social/cultura-desporto-lazer-pt/cultura-noticias-pt/2273-04-12-2019-em-2018-os-museus-da-ram-tiveram-menos-visitantes-enquanto-cinemas-e-espetaculos-ao-vivo-tambem-registaram-quebras-nos-espetadores-despesa
Goes, D. (2019, Agosto 12). Cultura em tempos de engate. Jornal Económico. Obtido em 17 de Maio de 2020, de https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/cultura-em-tempos-de-engate-476177
Goes, D. (2020, Janeiro 27). Barraca no Presépio. Jornal Económico. Obtido em 17 de Maio de 2020, de https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/barraca-no-presepio-539730
Goes, D. (2020, Março). Nós somos os outros. (E. Aguiar, Ed.) Revista Saber Madeira, nº274.
Lipovetsky, G. (2020, Fevereiro 3). Gilles Lipovetsky: “Nem tudo pode ser discutível. O professor tem de recuperar a autoridade”. (B. Hermoso, Entrevistador, & E. País, Editor) Brasil: El País. Obtido em 17 de Maio de 2020, de https://brasil.elpais.com/brasil/2020/02/03/eps/1580764477_822955.html?ssm=FB_CC&fbclid=IwAR1oa9O9Y2JhLwybLSav9xqBVMnWVwW1zJahThoqS410Z1e4u0_iOkX97CA
Lopes, M. (2020, Abril 11). Uma Europa desigual no apoio ao seus sectores culturais. Público. Obtido em 17 de Maio de 2020, de https://www.publico.pt/2020/04/11/culturaipsilon/noticia/europa-desigual-apoio-sectores-culturais-1911881
Raposo, L. (2020, Abril 13). Os museus e o património cultural antes, durante e depois da pandemia de Covid-19. Património.pt. Obtido em 17 de Maio de 2020, de https://www.patrimonio.pt/post/os-museus-e-o-patrim%C3%B3nio-cultural-antes-durante-e-depois-da-pandemia-de-covid-19
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