Resenha do livro O Destino da África: cinco mil anos de riquezas, ganância e desafios de Martin Meredith (Tradução: Marlene Suano. Rio de Janeiro: Zahar, 2017).
Martin Meredith é historiador e jornalista, autor de diversos livros sobre o continente africano. Ele especializou-se principalmente nas histórias da África do Sul e do Zimbábue, e desenvolveu uma abordagem que enfatiza as biografias de alguns personagens paradigmáticos, tais como: Nelson Mandela, Desmond Tutu, Bram Fischer, Robert Mugabe, entre outros. O livro The Fate of Africa, publicado originalmente em 2005, tornou-se um best-seller nos EUA. O livro em questão aqui —O Destino da África— trata-se de uma tradução do livro The Fortunes of Africa, publicado originalmente em 2014, e provavelmente seja a primeira obra de M. Meredith publicada no Brasil.
O Destino da África é uma obra de fôlego: são 16 partes, 71 pequenos capítulos, diversos mapas e imagens distribuídos em 740 páginas. É um texto extenso, mas não é extremamente denso nem apresenta algo que torna a sua leitura enfadonha. O autor buscou apresentar uma linguagem sedutora e capaz de atrair o público em geral. Mesmo assim, os estudiosos da área de história da África podem encontrar, na seção das notas (pp. 679-698), algumas indicações valiosas de fontes relacionadas aos temas e aos períodos específicos.
Introdução (pp. 17-20)
Parte I — A África e o mundo antigo (pp. 23-64)
Parte II — A difusão do cristianismo (pp. 69-105)
Parte III — A Idade Moderna: A África na era das grandes navegações (pp. 111-158)
Parte IV — O impacto do islã (pp. 161-195)
Parte V — O crescimento da usurpação parasitária europeia (pp. 199-238)
Parte VI — Brancos e negros no sul da África (pp. 243-280)
Parte VII — Rasgando o coração da África (pp. 283-319)
Parte VIII — O projeto do canal de Suez e o destino do Egito (pp. 323-350)
Parte IX — As riquezas da África: diamantes e ouro (pp. 353-390)
Parte X — A corrida para explorar a África no final do século XIX (pp. 393-432)
Parte XI — Resistência na Abissínia (pp. 435-448)
Parte XII — O coração das trevas: atrocidades no Congo (pp. 451-462)
Parte XIII — Guerra no sul da África (pp. 465-492)
Parte XIV — Os Estados coloniais da África (pp. 495-527)
Parte XV — A onda do nacionalismo (pp. 531-591)
Parte XVI — A era da independência: golpes, ditadores e “vida platinum” (pp. 595-678)
Notas (pp. 679-698)
A perspectiva que predomina nesta obra do M. Meredith é a perspectiva dos exploradores do continente africano, tais como: Al-Bakri, Ibn Khaldun, Álvaro Velho, Padre Pero Pais, René Caillié, Heinrich Barth, David Livingstone, Richard Burton, John H. Speke, Henry M. Stanley, Serpa Pinto, entre outros. Pode ser decepcionante para quem busca conhecer e dialogar com as perspectivas propriamente africanas, mesmo reconhecendo que alguns exploradores eram africanos. Mas não deixa de ser importante conhecer como a África, ao longo dos séculos, foi sendo enxergada e retratada de maneiras distintas por estes forasteiros e exploradores. O livro Imagens da África, organizado pelo historiador brasileiro Alberto da Costa e Silva, pode ajudar quem não tem familiaridade com as fontes que foram amplamente utilizadas aqui por M. Meredith.
A narrativa de M. Meredith privilegia as grandes formações políticas, as disputas pelas riquezas e os personagens supostamente paradigmáticos. Um espaço relevante da primeira parte do livro é dedicado ao Egito antigo (pp. 23-58). É importante o conteúdo relativo ao Egito antigo estar presente numa obra que aborda o continente africano como um todo. No entanto, M. Meredith não cogita relacionar as preciosidades do Egito antigo com a África subsaariana. Por quê? Não trata-se de defender uma adesão irrestrita a algum “afrocentrismo kemético” ou concordância cega à tese da negritude dos antigos egípcios, mas é fundamental dialogar de alguma forma com as obras de autores como Cheikh Anta Diop para que o Egito antigo deixe de ser um elemento estranho à história da África.
A questão da escravidão e do tráfico de escravizados é recorrente ao longo da obra (pp. 95-96, 133-145, 207-210, 219, 248, 264, 284-296, 448, 459-460, 505). O padrão narrativo muda ao abordar esta questão: M. Meredith menciona que há fundamentação para seu ponto de vista –“de acordo com pesquisadores modernos” (p. 135)– e apresenta diversos números relativos ao tráfico de escravizados, principalmente entre os séculos XV e XIX. Há uma tese controversa sobre a escravidão que é defendida de forma implícita pelo autor, sem uma devida explicitação e como se fosse algo consensual no meio acadêmico. Por quê? Provavelmente M. Meredith segue a tese defendida pelo historiador estadunidense John K. Thornton de que a escravidão já estava enraizada, estava amplamente difundida na África e não foi um fator externo. Nas palavras do autor:
[…] “Estima-se que, entre 1450 e 1900, o tráfico transatlântico [de escravizados] tenha chegado a 11,3 milhões. Mas, embora o tráfico de longa distância tenha se esgotado [no final do século XIX], a escravidão interna permaneceu profundamente enraizada em muitas sociedades africanas, durando grande parte do século XX.” (p. 448)
O texto simplesmente estabelece continuidade e indistinção entre a escravidão ou vassalagem preexistente na África e a escravidão moderna impulsionada pelos europeus, não houve uma tentativa de problematizar esta questão.
Há um mapa, intitulado A África antes da partilha (p. 392), que apresenta a maior parte do continente africano em branco, sem preenchimento, indicando que poucas áreas eram ocupadas pelos europeus até o final do século XIX. Este mapa transmite a ideia de que a maior parte do continente africano não foi afetada pelas potências européias antes da partilha. Mesmo ao referir-se ao período pós-independência, das décadas de 1950 e 1960, M. Meredith afirma: “O vasto interior permaneceu praticamente intocado pelo desenvolvimento moderno” (p. 597). Algumas questões se impõem: Por que não apresentar um mapa indicando as diversas expedições dos exploradores europeus? Por que não apresentar um mapa indicando as regiões mais afetadas pelo tráfico transatlântico de escravizados? Será que é possível pensar que o desenvolvimento na Europa e nas Américas não afetou minimamente o continente africano? E quem foi que estipulou os preços dos escravizados e das matérias-primas provenientes da África ao longo dos séculos?
Mantendo-se permeado por essas ideias, o argumento de M. Meredith segue no sentido de desresponsabilizar os colonialismos e os neocolonialismos pelas mazelas do continente africano e de imputar a maior parte da responsabilidade sobre os próprios africanos. Algumas afirmações continuam sendo feitas sem as devidas problematizações, como: “O domínio colonial era mantido com a colaboração de uma série de autoridades africanas” (p. 522). Seu argumento culmina no retrato estereotipado de uma África independente que torna-se cada vez mais um caldeirão de conspirações, golpes e revoltas, o berço dos fanatismos religiosos, e com países governados por “tiranos militares”.
O que dizer ao fim da leitura? Infelizmente tudo indica que a obra de Martin Meredith é mais uma representante do chamado afro-pessimismo. Trata-se de uma corrente com perspectiva que inviabiliza as representações positivas ou mais realistas da África, que rejeita a interpretação da África enquanto continente civilizado e capaz de produzir conhecimento. Além disso, o autor se reservou ao direito de não problematizar de forma explícita diversas questões. Por mais que se queira levar adiante uma narrativa acessível ao público em geral e com forte apelo comercial, o leitor deve ser informado de que diversas posições adotadas pelo autor são controvertidas e muito combatidas no meio acadêmico.
Referências:
Costa e Silva, A. (org.). Imagens da África: da Antiguidade ao século XIX. São Paulo: Penguin, 2012.
Cruz e Silva, T.; Borges Coelho, J.P.; Souto, A.N. (orgs.). Como fazer ciências sociais e humanas em África. Dakar: Codesria, 2012.
Diop, C.A. The African Origin of Civilization: Myth or Reality. New York: Lawrence Hill, 1974.
Meredith, M. Nelson Mandela: A Biography. London: Penguin, 1997.
Meredith, M. Fischer’s Choice: A Life of Bram Fischer. Johannesburg and Cape Town: Jonathan Ball, 2002.
Meredith, M. The Fate of Africa: From the Hopes of Freedom to the Heart of Despair. New York: Public Affairs, 2005.
Meredith, M. Mugabe: Power, Plunder, and the Struggle for Zimbabwe’s Future. New York: Public Affairs, 2007.
Meredith, M. The Fortunes of Africa: A 5,000-Year History of Wealth, Greed and Endeavour. London: Simon and Schuster, 2014. [Edição brasileira: Rio de Janeiro: Zahar, 2017.]
Thornton, J.K. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.