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Os usos sociais do termo Cultura

Os usos sociais do termo Cultura

“Cultura” é um termo polissémico. Esta polissemia deveu-se, em parte, à divulgação da antropologia cultural, sendo utilizada inclusivamente nos círculos de poder, como a política, para validar e legitimar ideologias, ou em contextos sociais, com a intenção de certos grupos se afirmarem.

No caso da política, evoca-se frequentemente a “cultura de governo” comparada à “cultura de oposição”. Quanto aos contextos sociais, o termo assume expressões colectivas associadas a determinados grupos, na maioria minoritários e efémeros, de que são exemplo a “cultura hip hop”, a “cultura futebolística”, a “cultura do telemóvel” ou a “cultura do ódio”.

Dificilmente algum destes conceitos atinge uma expressão geral em todas as faixas etárias, géneros ou etnias, ou a raiz, tradição ou reinvenção de uma sociedade no seu todo, por isso, se fala em culturas e não Cultura.

De facto, essa manipulação semântica do termo derivou numa utilização arbitrária da palavra, numa generalização e banalização do seu significado científico, indispensável para a interpretação das sociedades.

A diferença é que a ideologia se reporta a uma proposta de cultura, e a Cultura refere-se aos sistemas de valores, princípios, crenças, hábitos, modos de pensar e agir, já implementados, e em fase de aperfeiçoamento pela generalidade dos membros de um determinado grupo.

Contudo, apesar do abuso do termo, não deixa de fazer sentido utilizá-lo no âmbito de outras ciências, dado que a cultura é o conjunto de aspectos, comportamentos, princípios e tendências de determinada sociedade, que auxilia na compreensão e caracterização de algumas soluções políticas, económicas e judiciais.

Por estes motivos, surgiram vários conceitos, entre os quais “cultura política”, “cultura de empresa”, “cultura erudita” e “cultura de massas”.

O termo “cultura política” emanou das ciências sociais, nomeadamente da sociologia política, e demonstra que instituir um determinado regime político, como o democrático, por exemplo, não implica que, automaticamente, todos sejam e ajam como democratas, seria necessário que a essência cultural de onde emanou o ideal da democracia obtivesse correspondência no destino onde se pretende implementar. O mesmo princípio é válido para a universalidade dos direitos humanos. O facto de existirem não significa que sejam automaticamente compreendidos e praticados, pois foram concebidos por seres humanos com uma consciência e cultura por vezes distintas daquelas a quem se pretendiam dirigir. Pôr um rótulo de um refrigerante numa garrafa de água, não transforma a água em sumo.

De qualquer forma, não significa que as ideologias políticas, não possam, progressivamente, ser implementadas e provocar alterações na cultura de determinada sociedade, pois, se assim não fosse, o percurso das sociedades não teria registado várias alterações de sistema, conforme sucedeu em Portugal quando o Estado monárquico se transformou numa monarquia constitucional, e posteriormente numa República, ou quando a República transitou para a ditadura, e ainda quando o Estado ditatorial foi substituído por um regime democrático. Porém, estas alterações foram sempre acompanhadas de períodos de transição. 

A noção de “cultura política” verificou-se no estudo empreendido por Gabriel Almond e Sidney Verba, onde ao compararem cinco países ocidentais (Estados-Unidos; Grã-Bretanha; México; Itália; Alemanha), e inventariaram diferentes comportamentos políticos, caracterizados pelas seguintes tipologias: “cultura paroquial”, centrada em interesses locais e descentralizada; “cultura de sujeição”, em que se alimenta a passividade dos indivíduos para garantir uma estrutura de autoridade; e ”cultura de participação”, relacionada com as actividades democráticas. Não são estanques e podem coexistir entre elas, porém, aquela que for dominante explica a estrutura e o funcionamento de determinado sistema político. 

Através da antropologia política, do estudo da “cultura política” e das subculturas, ficou demonstrado que dentro de um determinado grupo há divergências de comportamento em prole do dominante, porém não a fragmentam, antes contribuem para a noção de conjunto. Assim, ao demonstrar que os termos “política”, “poder” e “direito” adoptam concepções diferentes (quer através do tempo, quer no espaço geográfico), relevam a importância do termo “cultura”, permanecer íntegro e fiel à definição das características de base das sociedades, para que se possam estudar e compreender com rigor e definição. É em redor da cultura, que todas as restantes expressões e relacionamentos sociais de podem compreender. 

Uma outra utilização do termo, “cultura de empresa”, cuja origem foi a realidade empresarial americana dos anos 70, tinha por intenção acentuar a importância do ser humano na produção. Entretanto o termo adquire projecção global e, em França, é utilizada a partir da década de 1980, no contexto de crise económica. Foi utilizado com a intenção de definir os contornos da organização e do funcionamento empresarial, para fazer face aos seus problemas estruturais que originaram a crise. Assim, a cultura de empresa é o que impõe um sistema de valores e representações dos seus membros, que deve ser aceite pelos que estão e pelos que irão integrá-la.

Porém, quando se transporta este conceito para o campo das ciências, nomeadamente para o  da sociologia, abordou-se o conceito noutra perspectiva, sendo aquela que designa o resultado dos confrontos culturais entre os diferentes grupos sociais que compõem a empresa, isto é, em vez de homogeneizar o ideal de valores a que todos deveriam obedecer, fragmenta a sua composição. Neste contexto, sobressaem quatro grupos culturais distintos: o primeiro corresponde aos operários especializados e os trabalhadores não qualificados que valorizam o colectivo a que pertencem; uma segunda cultura remete para os operários de ofício, técnicos e outros funcionários de enquadramento, orientados para a aceitação das diferenças e para a negociação; a terceira categoria corresponde à situação de mobilidade profissional prolongada, experienciada pelos quadros autodidatas e pelos técnicos, que se caracterizam por ter um comportamento selectivo; a quarta cultura corresponde aos operários não qualificados desprovidos de memória operária, como os trabalhadores imigrados, operários-camponeses, mulheres e jovens, caracterizados por um comportamento retraído e dependente, em que o projecto da empresa é principalmente vivido como uma situação que lhes é exterior.         

Destarte, o estudo Sainsaulieu, demonstra que dentro da mesma empresa coexistem diferentes culturas, e que o trabalhador não deixa de ter a sua própria cultura e espírito de iniciativa ao integrar a cultura generalizada da empresa. Por esse motivo, também não significa que esteja em harmonia quer com as outras culturas, ou com a cultura da empresa, sendo fundamental que a formação de um grupo de trabalho tenha em consideração estas nuances culturais e atenção ao que pode ser o seu produto.

Por outro lado, a cultura organizacional da empresa não é um universo fechado, depende do contexto nacional, ambiental ou social, pois a relação existente assim o determina. Por exemplo, Michel Crozier (1963), pôs em destaque a existência de um modelo cultural francês de organização de empresa, marcado pelo formalismo burocrático e a extrema centralização das estruturas assim correspondendo a uma tendência específica da sociedade francesa.

Dentro dos usos sociais do termo “cultura”, há outras duas noções a ter em consideração: “cultura dos emigrados” e “culturas de origem”.                    

A “cultura dos emigrados” surge em França nos anos 70, para discutir as condições de integração destes grupos e consequências do seu contacto cultural com o país de acolhimento.        

A “cultura de origem” implica que a cultura é algo “transportável”, quando na verdade, a unidade móvel é o indivíduo. Ainda que este tenha um comportamento e um sistema de valores diferente daquele do país para onde emigra, terá forçosamente que se adaptar e evoluir para outro patamar de atitude social, pois disso depende a sua sobrevivência. Das suas interacções emanarão outras formas culturais.        

O conceito de multiculturalismo, por outro lado, tem em atenção essas diferenças e esforça-se por conciliar os valores universais com os particulares, tendo em vista que a cada indivíduo, independentemente da sua etnia, género ou faixa etária, tenha acesso aos mesmo direitos e deveres, enquanto ser humano.

Esta noção de “cultura de origem” induz em erro noutras vertentes. Qual origem? Étnica? Local? Regional? E sob que condições de transformação? E sob a designação de que objetivos de individuais, comunitários ou familiares de migração? Ou seja, o único momento em que um emigrante pode ser considerado como integrando uma “cultura de origem” é no momento da sua partida. Por outro lado, dentro do mesmo país, cada indivíduo está integrado em sistemas de valores, princípios e maneiras de viver distintas, conforme sucede entre as comunidades mais rurais e as urbanas, tendo, por isso, origens culturais diferentes.

Perante estas circunstâncias, a expressão “cultura de origem”, apenas tem sentido quando os indivíduos mantêm os seus hábitos e costumes no país para onde emigraram. Esta situação sucede quando dela depende a coesão e integridade de um determinado grupo. Por exemplo, Jacques Barou demonstrou que, na França dos anos 70, os africanos muçulmanos provenientes do Sahel, sobretudo os soninkê, conseguiam recompor a sua organização social e comportamento, através da manutenção da confiança no seu sistema social e cultural, pois tratou-se de uma migração comunitária, porém, os africanos da costa ocidental, provenientes de sociedades segmentárias e vulneráveis, estavam sobretudo preocupados em assimilar a cultura francesa. Em ambos os casos, a continuidade destes grupos, dependeu da sua posterior interacção com as instituições francesas, nomeadamente a escola. Esta circunstância leva ainda à discussão do termo “segunda geração”, quando nos referimos à descendência daqueles que emigraram, pois a cultura não se transmite pelos genes. Há, sim, uma herança cultural, mas ela não determina a formação do indivíduo, dado que para ela concorrem um sem número de factores que o indivíduo não controla, como as escolas e o contacto com outros grupos sociais.

Invocar os símbolos do seu passado, como a aldeia de origem, um costume ou uma crença, seja na primeira ou na segunda geração, é recusar a inevitabilidade de todo o processo de evolução a que esteve sujeito, anulando-se como sujeito e descontextualizando a sua própria herança.

Pode manter uma tradição cultural, isto é, um determinado hábito feito sempre igual e passado de geração em geração, contudo, esta só tem sentido no âmago de um determinado grupo. Mas esse grupo está integrado num contexto permanente de desenvolvimento, evolução e recepção de novas influências, como tal, a sua tradição, também tem de sofrer algum género de alterações. Em suma, qualquer que seja o contexto de um emigrante, este será sempre o produto fabricado a partir de todas as suas actividades e interacções.      

Cuche, D. –  A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. 2ª edição. Lisboa: Fim de Século, 2004, p. 155-175

Imagem (Skitterphoto) gratuita em Pixabay

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