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“O povo está para a guerrilha como a água está para o peixe. Quem quiser acabar com o peixe, deve primeiro acabar com a água”…

“O povo está para a guerrilha como a água está para o peixe. Quem quiser acabar com o peixe, deve primeiro acabar com a água”…

Já foi dito, nesta coluna, que o terror é um gênero cinematográfico eminentemente político. A audiência ao filme guatemalteco “La Llorona” (2019, de Jayro Bustamante) – indicado ao Globo de Ouro 2021 de Melhor Filme em Idioma Estrangeiro – confirma de maneira grandiosa esta afirmação. Sobretudo porque o roteiro assume esta relação num viés perturbador: o que assusta no filme são os fantasmas de genocídios contemporâneos, ainda insuficientemente enfrentados pela História…

Como ocorreu em diversos países latino-americanos, a Guatemala também foi assolada por golpes militares e pela instauração ditatorial. Em razão de parte considerável de sua população ser composta por grupos indígenas, resistentes etimológicos aos desmandos militares, houve um genocídio de largas proporções no início da década de 1980, quando o Exército do país compôs as Patrulhas de Autodefesa Civil (PAC) e mais de cinqüenta mil civis foram assassinados. Eis o que serve de gérmen tramático para o filme em pauta…

Logo no início, a pequena Sara (Ayla-Elea Hurtado) pergunta “por que falam tão mal do vovô?”. Neta do general Enrique Monteverde (Julio Diaz), ela não entende as condições do julgamento prolongado a que ele vem sendo submetido. Com idade avançada e com suspeitas de estar com Mal de Alzheimer, este general é acusado de ter contribuído para a eliminação de quase um terço da população indígena da Guatemala, no período supracitado. É óbvio que ele é culpado, mas sua filha e sua esposa agem de maneira conivente em relação às suas falhas de caráter. Até que ele começa a atirar nas empregadas…

Alegando ouvir o choro persistente de uma mulher, que teme ser uma guerrilheira que invadiu a sua casa, Enrique demonstra sinais evidentes de senilidade culposa: ainda que não admita, passa a ser perseguido pelos espíritos das mulheres e crianças que assassinou. No tribunal, sobreviventes maias, cobertas por véus, descrevem as condições aviltantes dos estupros que sofreram. A sentença é óbvia: culpado! Passando mal durante a sessão, Enrique é internado devido a problemas respiratórios. Entretanto, não pára de fumar. É a metonímia perfeita da hipocrisia subconstitucional que favorece os poderosos. Exemplos similares no Brasil hodierno não faltam!

Indignados por causa da anulação do julgamento, dezenas de protestantes reúnem-se diariamente nas cercanias da residência da família Monteverde. É quando situações estranhas passam a acontecer. E até mesmo quem é conivente assume o seu quociente de culpabilidade: a mãe de Sara, por exemplo, lida com o desparecimento de seu marido, sabidamente por motivos políticos. Todavia, sempre que Natalia (Sabrina De La Hoz) tenta confrontar a malevolência de seu pai, é interpelada por sua mãe, Carmen (Margarita Kenéfic), que convenientemente transfere a responsabilidade dos erros de seu cônjuge para as vítimas. Se Enrique é flagrado, em plena madrugada, no banheiro de uma das empregadas, com ereção evidente, a culpa é da mocinha, que usa um uniforme “excessivamente justo”. Como sói acontecer nesse tipo de conjuntura matrimonial, Carmen acostumou-se aos adultérios: “meu marido sempre preferiu as mulheres indígenas”!

Estabelecido este panorama de eventos, diversas seqüências transmitem a impressão progressiva de terror a partir do suspense relacionado à profusão de água: num determinado momento, um sapo aparece boiando na piscina, apoiando-se nos panfletos que denunciam os desaparecimentos causados pelos crimes de Enrique; Sara insiste em manter-se submersa com freqüência, simulando afogar-se; Carmen urina na cama após ter pesadelos. “É normal em sua idade”, tenta consolar a sua filha. Considerando-se o seu abandono enquanto esposa, talvez isso seja a versão trágica da célebre anedota que promulga que “cada um chora por onde sente saudades”. É um filme extremamente triste, não esqueçamos.

A despeito do modo vingativo como o protagonista passa a ser perseguido por seus crimes militares, o que evidencia extrafilmicamente a necessidade de reparação histórica, não há triunfalismo em “La Llorona”: Enrique é apenas um dentre os diversos criminosos amparados por uma legislação oportunista e pela aparência social de “cidadão de bem”. Junto à sua esposa e à sua filha, Enrique posa como típico cristão, cumpridor de seus deveres e comprometido com valores democráticos ostensivamente parciais. Mais uma vez, tem como não pensar na desoladora situação atual da política brasileira?

Em sua função de avantesma consciencioso, deparamo-nos com a figura de Alma (María Mercedes Coroy), jovem lacônica que aceita trabalhar na residência dos Monteverde, depois que os empregados indígenas evadem-se. Logo percebemos que a sua alcunha não é casual: a presença desta mulher traz à tona inúmeros fantasmas, demonstrando a pujança do cineasta enquanto roteirista político. A atriz que interpreta essa personagem também participou do longa-metragem de estréia de Jayro Bustamante, “O Vulcão Ixcanul” (2015), sobremaneira denuncista em relação aos maus tratos contra a etnia Kaqchikel. Definitivamente, este é um cineasta em quem devemos prestar atenção!

Wesley Pereira de Castro.

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