“Bem, está tarde, crianças, vivam bem e tentem ser felizes! Não só por vocês, hein, tentem ser felizes para que os outros o sejam. É essa a tarefa. Enquanto estivermos na Terra, devemos trabalhar para que a felicidade se torne mais contagiosa do que o infortúnio (…). É tão bom imaginar o inimaginável (…)” (Jean-Claude Grumberg. As chaminés tocam o céu: um conto para crianças velhas).


Autoria de Ibraheem Abu Mustafa/Reuters
Jean-Claude Grumberg, escritor e dramaturgo francês, notório pela (pequena)imensa obra A mercadoria mais preciosa[1], chega às prateleiras das livrarias brasileiras com mais uma produção de impacto, o conto De Pitchik a Pitchuk: un conte pour vieux enfants, aqui publicado sob o título As chaminés tocam o céu: um conto para crianças velhas[2].
É noite de Natal em Paris e uma viúva de bastante idade — mãe, avó —, vê-se sozinha em seu apartamento, sem ninguém com quem dividir data tão simbólica. Para ela, o Natal é importante não propriamente pelo nascimento de Jesus, a quem os judeus não reconhecem como Salvador, mas pelas lembranças do marido falecido e pela esperança, representada pelos sapatinhos aos pés do pinheiro nos quais a mítica figura de Papai Noel houvera, ano a ano, de deixar presentes para seus filhos quando crianças.
Se a velhice é o tempo do recordar, do contar histórias para presentear aos mais novos o vivido, estar velho e só na noite de Natal é, de alguma forma, lutar para não ser tragado pela draga insana da melancolia, que lança a memória em um poderosíssimo vórtice de desalento, confusões e esquecimentos.
Conduzido pelo sinuoso e frágil fio da memória dos velhos, onde o real e o imaginado se condensam em uma névoa etérea e disforme de imagens resgatadas-perdidas-criadas, o texto de Grumberg faz uso de duas potentes e singelas alegorias — as chaminés e os sapatinhos — para conectar duas insólitas dimensões do viver: o fantástico e o absurdo.
Em As chaminés tocam o céu…, o fantástico se apresenta na figura de um Papai Noel viúvo e exaurido ante o desalentador desencantamento do mundo ocidental, sobre o qual nos alertara Max Weber no alvorecer do século XX[3]. Modernos, secularizados, os lares europeus ostentam tecnológicos pisos aquecidos em lugar das lareiras do outrora, ao passo em que as lareiras que ainda restam são acesas às vésperas do Natal, sem respeito ao trabalho de um ancião que as tem de descer em meio a um mar de aviltante fuligem negra. Há, ainda e por fim, as lareiras fechadas, inúteis ao frio e ao espírito, símbolos definitivos de um mundo imperado pela razão, que dá as costas a todo encanto, inclusive o Natal.
Fantástico é, também, o improvável encontro entre dois velhos solitários e nostálgicos dentro da chaminé de uma lareira na noite de Natal: de um lado, Papai Noel, com urgências miccionais, cansaço e fome, carente do Norte que lhe dava sua amada, finada Mamãe Noel; de outro, a idosa protagonista que passa o Natal sozinha e decide escalar a chaminé para saber se Papai Noel deixaria presentes ainda que já não houvesse mais crianças por ali. Nos velhos natais, recorda-se, a presença do marido tornava as noites formidáveis e inesquecíveis.
De uma recordação a outra, entre o vivido e o devaneado, amalgamam-se brumosa e desconexamente hoje e ontem, prosaico e incrível, nostálgico e abjeto. Assim é a memória, uma vigorosa tormenta emocional sem freios ou filtros morais. De súbito, já não há mais Papai Noel nem o antigo apartamento onde se criaram os filhos. Em seu lugar, uma cama estreita em um pequeno quarto com banheiro, um corredor, pessoas desconhecidas usando máscaras para fugir de um vírus mortal, comida sem sal nem açúcar e o velho do quartinho ao lado, com urgências miccionais como o Papai Noel. Em seu monólogo sem fim, o velho recorda a mulher amada e as festas de barraquinhas que aconteciam no Boulevard Rochechouart, logo ali, a dois passos de onde a solitária protagonista nascera.
A menção a um canto conhecido da cidade ativa na velha senhora novas lembranças. Onde havia um quartinho, uma cama e um velho a matraquear, surgem repentinamente imagens do inolvidável: a fotografia de família tirada na pracinha de sempre, agora hostil e proibida a cachorros e judeus (com pedido de desculpas aos cachorros!); o primeiro toque no antebraço do homem amado, para sempre marcado por um número que não lhe autoriza viver o esquecimento; as estrelas amarelas acusatórias sob peitos descarnados e acossados; as cruéis chaminés do nazismo que acinzentam os céus da Europa com a poeira do que até ali foram vidas humanas como a sua — avôs, avós, pais, mães, filhos.
O texto de Grumberg transita com maestria dos auspiciosos sapatinhos aos pés dos pinheiros de Natal ao absurdo de montanhas imorais e asquerosas de sapatinhos emaranhados, mudas testemunhas do mal que transfigurou em abjeção e terror as chaminés por onde o fantástico penetrava nos lares europeus.
Grumberg, que não apontou todas as tragédias, abriu todas as cortinas. Seu livro sobre memórias de amores e dores desagua em outros dramas, dramas não ditos, talvez até interditos. Não há como conhecer o sofrimento das crianças judias no holocausto e ignorar as rotas crianças palestinas segurando pratos e panelas vazios com seus bracinhos ansiosos na luta por um pouco de comida e água, um resto de dignidade, de humanidade, de esperança.
Enquanto leio sobre o terror imposto pelos nazistas a meninas e meninos judeus, vejo meninas e meninos palestinos — crianças-pó — cobertos pelos restos do que fora seu mundo: a casa, a escola, a praça, a mesquita, a lojinha da esquina, o parque onde brincavam com outras crianças… De repente, tudo escombro! De repente, tudo desalento e dor! Foi-se aqui um pai, ali uma tia, acolá uma avó, um irmão, um amigo. Foram-se as bonecas, os carrinhos, as roupas novas, os cadernos escolares, a caixinha de música… Foram-se o gato, o pássaro, o peixe dourado, o cachorro, as plantinhas dos quintais, os quintais… Foi-se tudo o quanto havia, foi-se tudo! E as crianças-pó, as que não se foram também (ou ainda), marcham perdidas em pelotões de órfãos de uma cidade a outra, de um campo a outro na tentativa de resistir às bombas, ao frio, à fome, à saudade, ao medo, ao embrutecimento que a guerra produz em si e em tudo.
Testemunho inerte essas imagens enquanto leio As chaminés tocam o céu…, entre enternecimento e tristeza profundos. Volto-me às sobreviventes crianças judias que, a seu tempo e de seu modo, viveram todo o horror da maldade nazista e, hoje crescidas, já idosas, são a mão simbólica que aperta o gatilho contra as vizinhas crianças palestinas. Apesar da idade avançada afastar do front os reminiscentes do holocausto, é em seu nome e em nome de tudo pelo que passaram que impiedosamente guerreiam seus filhos, netos e bisnetos contra meninos e meninas desprotegidos e apavorados.
No jogo da memória engenhosamente desenhado por Grumberg, onde tudo é emaranhado e conexão, onde o real é o fantástico e o absurdo, as crianças palestinas de quem o texto não trata surgem diante do leitor por mera força de correlação: tal qual fizeram os pais, avós e bisavós dos que hoje as combatem e matam sem traço de compaixão, elas lutam para sobreviver ao bestialógico e devastador labirinto da guerra.
Só o tempo dirá se as crianças palestinas que lograrem sobreviver ao morticínio[4] de seus vizinhos crescerão adultos mais generosos e solidários como seria de esperar de quem tanto sofreu pela impiedade alheia. Por ora, o exemplo do que se passa em Gaza não me autoriza a ter grandes esperanças.
[1] GRUMBERG, J-C. (2019). A mercadoria mais preciosa: uma fábula. São Paulo: Todavia.
[2] Id. (2024). As chaminés tocam o céu: um conto para crianças velhas. São Paulo: Todavia.
[3] WEBER, M. (2004). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras.
[4] Este texto foi concluído em 15 de janeiro de 2025, quando Israel e Hamas anunciaram acordo de libertação de reféns e cessar-fogo na Faixa de Gaza.