A historiografia dos Concelhos em Portugal tem levantado várias questões sobre a sua génese, reconhecimento formal e papel no processo de centralização régia. Mais detalhadamente, interroga-se a sua origem histórica. Questiona-se o ritmo com que as comunidades se agruparam, se espontâneo ou progressivo, no enquadramento da gestão monárquica e senhorial. Procura-se entender até que ponto o reconhecimento legal do Concelho como unidade administrativa preservou a sua autonomia. É necessário entender se resolução das necessidades das comunidades durante as mudanças administrativas dependeu da sua absoluta integração num organismo mais vasto (ex.: regime senhorial) ou se apenas articulou a sua autossuficiência com os novos sistemas. É preciso averiguar se essa articulação com a “tutela” foi absoluta ou relativa e de que forma a autonomia municipal serviu os propósitos do Rei. Procura-se responder a estas questões no período compreendido entre Reconquista e o século XV.
Quanto à sua origem e definição
Para citar apenas alguns, António Matos Reis (2006), José Mattoso (1985, 1997), Reyna Pastor de Togneri (Mattoso, 1997), García de Cortazar (Mattoso, 1997) e Marcelo Caetano (1994) explicaram que, no Norte peninsular1, as comunidades rurais independentes de autoridades superiores ter-se-ão formado durante o período visigótico e asturiano-leonês, preservando formas primitivas de organização e solidariedade de índole comunitária, sobreviventes da dominação romana ou de posterior formação. Antes da expansão do regime senhorial e da monarquia feudal, já havia comunidades que subsistiam graças à sua autonomia e poder negocial, sobretudo em zonas de fronteira. Por sua vez, depois das diversas alterações políticas e administrativas, foi através da manutenção da sua capacidade organizativa que se originaram os concelhos, todavia articulados com os senhores ou com o monarca, ainda que de forma relativa, dado que a concessão de forais é uma clara demonstração de poder que subjuga parcialmente a autonomia dos Concelhos ao modelo administrativo do monarca, agindo sobre eles como um senhor. Contudo o Concelho tinha capacidade deliberativa, definia o seu regime fiscal e judicial, organizava-se militarmente, tinha direito próprio, o “costume”, garantia o uso e a tutela de todos sobre os instrumentos de produção, e excluía os privilegiados de exercitarem poder no Concelho, pelo menos num primeiro momento.
No tocante aos forais
José Mattoso (1997), Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques (1996), demonstraram que o foral, ou sancionamento régio, começou por apenas delimitar os direitos e obrigações das comunidades para com o monarca ou senhor, e progressivamente tornou-se um meio de centralização régia. Tratava-se de um diploma concedido por uma entidade a outra, geralmente pelo rei, mas a partir do século XIII, são também concedidos pelas ordens, prelados, alcaides, casais, entre outros (vide Monumenta Histórica Portugaliae) (Marques, 1993). Os seus antecedentes radicam nos contratos agrários colectivos que procuravam atrair mão de obra, povoar e explorar determinado território. Os forais assumiram uma variedade de formatos e conteúdos, em geral referentes a normas do direito público reguladas pelo costume: as liberdades e garantias das pessoas e dos bens dos povoadores; impostos e tributos; composições e multas devidas pelos diversos delitos e contravenções; imunidades colectivas; serviço militar; encargos e privilégios de cavaleiros vilãos; ónus e forma das provas judiciárias; citações; arrestos e finanças; aproveitamento de terrenos comuns. Gama Barros (Serrão, 1990), sublinhou diferenças entre os forais quanto à intenção com que eram redigidos. Os senhoriais tinham um propósito de arrendamento (enfiteuse), e os régios um interesse na fixação e acesso aos recursos das comunidades concelhias, servindo também de censo. No século XV os forais são alvo de uma reforma manuelina (levada a cabo por Fernão de Pina), falhada em termos de modernização, mas bem-sucedida no tocante ao processo de centralização (Duarte, 2004). Porém, generalizar os forais como mecanismo efectivo e eficaz para controlar de forma homogénea a autonomia das comunidades concelhias não deve ser uma afirmação segura, dada a diversidade de concelhos, a sua composição social e a sua orientação económica (rebanhos; agricultura; comércio). Contudo, podem-se subdividir em rurais e urbanos, consoante a sua raíz económica.
Sobre a evolução do municipalismo
Humberto Baquero Moreno (1986) e José Marques (1993), são dois autores que exploraram a evolução do municipalismo2 em Portugal. Segundo as suas obras, o século XII e XIII é o período mais genuíno do municipalismo, dado que os séculos seguintes se ocupariam de cercear o seu poder. Numa fase inicial (século XII e XIII) os Concelhos têm uma autonomia judicial mais vincada, face ao poder central, onde a outorga de forais é menor (Marques, 1993). Mais tarde, no século XIV, o poder começa a circunscrever-se às famílias mais poderosas desses concelhos, o que origina disputas internas pelo poder municipal, enfraquecendo o poder concelhio e a sua unidade, face ao poder central. Com D. Afonso IV os oficiais régios judiciais (meirinhos, corregedores) ganham um acesso, ainda que limitado, às terras aforadas para colmatar lacunas e incompetências dos alcaides ou dos juízes. O rei tinha ainda acesso aos concelhos através das cartas de segurança para os indigentes, como as víuvas, os pobres e os órfãos. Outras formas de o rei limitar progressivamente a autonomia dos concelhos chegaram-nos através das queixas dos concelhos onde são mencionados os abusos de poder e a apropriação de territórios pelo rei.
Toda esta intervenção do monarca nos assuntos concelhios resultava em permanentes atritos e mal-estar entre o governo concelhio e os funcionários régios que para eles foram destacados, o que acabou por originar um declínio da sua autonomia a partir do século XIV. Outros factores que também contribuíram foram a incapacidade de os Concelhos manterem a sua unidade, e agudização do mal estar entre o poder local e central no reinado de D. Fernando, dado que os oficiais régios que executavam funções nos concelhos eram fidalgos, com interesses particulares. Este clima foi apaziguado pelo monarca, a partir do século XV, pois, no reinado de D. João, esses oficiais eram preferencialmente eleitos no concelho e pelo concelho em dia próprio (ordenação dos pelouros, 1391). Porém, no reinado de D. Afonso IV, derivado de constantes problemas motivadas pela incompetência dos eleitos para governar, as ordenações afonsinas vêm normalizar as regras de funcionamento das câmaras, mas sempre com intromissões e abusos por parte de nobres e corregedores, denunciadas junto do monarca. Face a isto o monarca defende o papel importante da nobreza e dos corregedores juntos das cortes, determinando que os cargos continuariam a ser exercidos e confirmados pela sua pessoa. Apesar de os concelhos se caracterizarem por um conjunto de símbolos, objectos e monumentos3, assim como por normas, procedimentos e contextos específicos4 (Serrão, J. e Marques & A. H. De Oliveira, 1996) que procurava demarcar a sua autonomia do jugo régio, a verdade é que as instituições concelhias foram sendo utilizadas pelos monarcas como veículo do processo de centralização5.
Notas
1 Esta zona é especificamente referenciada por ser a região incubadora do condado portucalense, em redor do qual se formarão os primeiros concelhos.
2 Apesar de se utilizarem palavras como “colectivo” e “comunidade”, não significa que os habitantes do Concelho partilhassem todos de um nível económico e social homogéneo. Pelo contrário, existiam acentuadas clivagens sociais, assentes numa hierarquização fundamentada em privilégios, isenções e honras que separava cavaleiros vilãos e peões, assim como de homens livres de outros em regime de dependência. Além disso, o governo dos concelhos era reservado aos mais poderosos em termos militares, económicos e sociais, contudo o concelho fosse de todos os seus vizinhos.
3 No tocante a símbolos era comum encontrar a representação de muralhas ou de um guerreiro a cavalo, águias, touros junto de muralhas, pelicanos, árvores, barcos e pontes, como alegoria da solidariedade colectiva. Relativamente a objectos, está documentado por estes historiadores o uso das bandeiras com determinados símbolos (variados consoante as circunstâncias) servindo para exprimir unidade e formas de aliança, conforme sucedeu com o concelho de Castelo Branco, que ostentou a bandeira da Covilhã quando combatia contra os cristãos, e a dos Templários, quando se batia contra os mouros. Havia ainda a arca para guardar a legislação e documentos que eram dirigidos ao concelho. E na documentação, utilizavam-se selos representativos do exercício da justiça de magistrados eleitos, demonstrando a capacidade deliberativa a nível interno e a segurança de homens e bens. O pelourinho tratou-se de um monumento de manifestação colectiva, sendo junto dele que se executavam as sentenças dos tribunais locais. Sucedia ainda uma preferência pela “praça do concelho”, um carvalho, o exterior da igreja (o adro ou o claustro), eram locais preferidos para reunir a assembleia que só discutiam assuntos de índole colectiva, ou fazer o pregão, não sendo comum o uso de edifícios específicos, como vieram a ser os “paços do concelho”. Também na nomenclatura se manifestou a identidade administrativa do Concelho (“sigillum concilii de (…)”).
4 Uma manifestação da colectividade e autonomia era a administração da justiça pelo próprio Concelho, sendo frequente recorrer aos “conjuradores”, que eram conjuntos de pessoas que juravam solenemente pela inocência do acusado, ou pela razão do acusador, normalmente vinculadas por sistemas de parentesco, mais do que recorrer ao tribunal público. Duas outras características da realidade normativa e autonómica concelhia eram a sua abertura em receber pessoas marginais ao Concelho, mas também reservando o direito de as expulsar quando fossem indesejadas. Além disso, cada comunidade concelhia era independente da outra, não existindo relações económicas, mas quando surgia a necessidade de comunicarem faziam-no num território limítrofe a ambas, uma fronteira intitulada “medianido”. Por outro lado, os concelhos urbanos, viam-se obrigados a mediar frequentemente a comunicação entre si, por desenvolvimento das actividades económicas e do comércio. Em Espanha formavam-se “hermandades”, associações que estabeleciam acordos entre concelhos. Em Portugal, H. Baquero Moreno, encontrou um destes exemplos em Ribacoa.
5 Na perspectiva de um monarca, a malha concelhia funcionava como um útil auxiliar na protecção e manutenção das cidades conquistadas para sul, garantindo o fornecimento de recursos e impostos que financiavam a guerra. Por esse motivo os concelhos concentraram-se assim em zonas estratégicas e em função da necessidade de definir o território. Em cada reinado, foram diferentes as regiões, no quadrante geográfico português, que receberam forais. Neste sentido, também os impostos cobrados aos concelhos, ou tributos, eram a forma do poder vigente afirmar-se sobre o do concelho, gerando uma espécie de relação de monopólio sobre os rendimentos e produtos do concelho. Eram ainda os oficiais régios que os recolhiam, havendo assim uma imiscuição da presença central nos assuntos locais. Aliás, os concelhos produziam e o rei beneficiava o seu crescimento, porém, sem os fazer crescer de forma a que lhe constituíssem concorrência, conforme aconteceu com os senhorios e os eclesiásticos.
Bibliografia
Reis, A. M. (2006). A Origem dos Municípios. In História dos Municípios (1050-1383) (p. 75-93). Lisboa, Portugal: Livros Horizonte Lda.
Bibliografia adicional
Caetano, M. (1994). 10. O Município. In Estudos de História da Administração Pública Portuguesa (p. 325-333). Coimbra, Portugal: Coimbra Editora.
Coelho, M. H. C.; Magalhães J. R. (1986). 1. As Origens. In O Poder Concelhio: Das Origens às Cortes Constituintes. Notas da História Social.(p.6-7). Coimbra, Portugal: Edição do Centro de Estudos e Formação Autárquica.
Duarte, L. M. (2004). Os “Forais Novos”: uma reforma falhada? In Actas do III Congresso Histórico de Guimarães, D. Manuel e a Sua Época, de 24 a 27 de Outubro de 2001. (p.158-170). Guimarães, Portugal: Câmara Municipal de Guimarães.
Marques, José (1993). Introdução. In Os Municípios Portugueses dos Primórdios da Nacionalidade ao Fim do Reinado de D. Dinis. Alguns Aspectos. Comunicação apresentada
ao 1º Colóquio Luso Brasileiro sobre Municipalismo e História Urbana, 23 de Agosto a 2 de Setembro de 1993, Rio de Janeiro (p.69-90). Porto, Portugal: Revista da Faculdade de Letras.
Mattoso, J. (1985). Cartas de Povoamento (2ª Ed.). In A Identificação de um País. Ensaio Sobre as Origens de Portugal (1096-1325) (p.345). Vol. I – Oposição. Lisboa, Portugal: Editorial Estampa.
Mattoso, J. (1985). Os Concelhos (2ª Ed.). In A Identificação de um País. Ensaio Sobre as Origens de Portugal (1096-1325) (p.293-342). Vol. I – Oposição. Lisboa, Portugal: Editorial Estampa.
Mattoso, J. (1997). Os Concelhos. In Mattoso, J., História de Portugal. A monarquia feudal (1096-1480) (p.169-197). Vol. 1. Lisboa, Portugal: Editorial Estampa.
Moreno, H. B. (1986). A Evolução do Município em Portugal Nos Séculos XIV e XV. In Os Municípios Portugueses nos Séculos XIII a XVI. Estudos de História (p.33-45). Lisboa, Portugal: Editorial Presença.
Serrão, J. (dir.) (1990). Concelhos. In Dicionário da História de Portugal. (p. 137-139). Vol. III. Porto, Portugal: Livraria Figueirinhas.
Serrão, J. (dir.) (1990). Forais. In Dicionário da História de Portugal. (p. 55-57). Vol. III. Porto, Portugal: Livraria Figueirinhas.
Serrão, J.; Marques, A. H. De Oliveira (1996). 2.2.3. A Vida Concelhia Por Entre o Normativo e o Simbólico. In Nova História de Portugal. Portugal em Definição de Fronteiras (1096-1325). Do Condado Portucalense à Crise do Século XIV (p. 560-567). Vol. III. Lisboa, Portugal: Editorial Presença.
Uma resposta
Muito interessante! Grata por mais conhecimento, Diana Carvalho, os meus parabéns!