A expressão “Apropriação Cultural” tem aparecido com frequência no meu dia a dia e, em geral, tratada como algo negativo, nefasto, e que deve ser evitado. Quem mais sofre e se lamenta dessa prática é a comunidade afrodescendente, que vê elementos da sua cultura serem utilizados por várias pessoas, sem levar em conta a origem e o fundamento daquilo que é apropriado. Dois exemplos disso são a tentativa de transformar o Acarajé num “bolinho de Jesus” e o surgimento da Capoeira Gospel, que elimina das rodas as cantigas que se referem às religiões de matriz africana e católica, substituindo-as por outras, com letras baseadas na Bíblia. Essas duas “apropriações culturais” pretendem tirar proveito daquilo que o acarajé e a Capoeira têm de bom, mas menosprezando a ligação que as duas coisas têm com a cultura afrodescendente.
Todavia, apropriações culturais existem desde que o Neandertal e o Sapiens se encontraram, há cerca de 15.000 anos. Poucas culturas que existem hoje não se apropriaram de elementos da cultura de outros. O macarrão que comemos e a cerveja que bebemos são prova disso e, num sentido inverso, as roupas usadas pelas mulheres, especialmente as saias rodadas, nos terreiros de Candomblé não tem nada a ver com África e são “apropriações culturais” das cortes europeias e coloniais.
A Bossa Nova, estilo musical que surgiu no Brasil entre as décadas de 1950 e 1960, se apropriou do Samba e criou várias composições que se denominavam assim, mas que não tinham nem pandeiro, nem tambor, e que eram criadas nos bares dos bairros mais nobres do Rio e de São Paulo, por gente branca, que bebia uísque importado e tocava violão. Por ter projetado o Brasil no exterior e por acontecer numa época em que a consciência dos valores da negritude não existia e eles eram até desprezados, a Bossa Nova, independentemente dos méritos e da qualidade de suas composições, se tornou um símbolo da cultura brasileira.
Há apropriações culturais que aconteceram pela absoluta falta de opção numa nova situação vivida por algum povo, como por exemplo, as adaptações culinárias feitas por imigrantes nas receitas de sua culinária tradicional, por causa da falta de algum ingrediente específico que não existia no lugar para onde se mudaram. Outro exemplo foi a criação das Irmandades de Homens Pretos, no Brasil colonial, criadas por escravizados e alforriados para garantir um mínimo de dignidade aos seus membros, e que foram adaptadas a partir de modelos de confrarias europeias com uma base eminentemente católica. Mas há também as apropriações que acontecem porque a cultura do outro encanta, diverte, alegra e faz bem. A Capoeira Gospel faz exatamente isso, mas, ao afastar a lembrança das origens africanas, revela um lado preconceituoso, excludente e intolerante e contraditório, pois mantém os tambores e o berimbau como um mínimo de identidade para continuar chamando o que fazem de Capoeira.
Na defesa da Capoeira de raiz africana se ressalta sua inclusão como patrimônio da humanidade, o que significaria que ela não pode ser modificada. Entretanto, como patrimônio imaterial[1], ligada a um “saber” e não a um “existir”, a Capoeira pode, sim, sofrer mudanças e continuar a ser um patrimônio, desde que haja um consenso entre os que a praticam, de que essa mudança é necessária. Assim, num contexto ainda que bizarro, se todos os praticantes da Capoeira se tornassem evangélicos pentecostais e decidissem abolir as cantigas que mencionam elementos católicos ou dos candomblés, isso poderia ser feito.
É preciso distinguir as apropriações culturais nocivas, que prejudicam a cultura de origem e, através do exercício e da prática da cultura originária, manter seus significados vivos e evidentes, não se deixando levar por preconceitos que são, em última análise, fruto da ignorância.
[1] Patrimônios imateriais se referem a um saber e a uma forma de fazer as coisas que pode mudar ao longo do tempo. Patrimônios materiais são bens tombados, como prédios e cidades, e estes não podem ser alterados sem a orientação do órgão que os declarou patrimônio.