Há duas semanas que a RAG (Real Academia Galega) (1) decidiu reunida em pleno dedicar o dia das Letras Galegas a um dos mais importantes inteletuais galegos do século XX: O Ricardo Carvalho Calero.
Dom Ricardo, como assim o chamamos ainda hoje aquelas pessoas que alguma vez o tratamos (2), foi o primeiro Catedrático de galego da Universidade de Compostela desde 1972 depois de ter passado por uma guerra contra a legítima República Espanhola provocada pelo golpe de estado de Franco em 1936, ser preso e encarcerado por “separatista” para ser libertado em 1941 sem a possibilidade de ser reincorporado ao seu trabalho de docente do ensino público secundário onde ganhava a vida anteriormente ao levantamento militar que desencadeou o conflito armado.
Só a partir dos anos 50 é que consegue trabalho como professor num Liceu de Lugo vinculado historicamente ao progressismo e ao pensamento democrático mas nem sequer nos seus piores anos de perseguição política e ideológica deixou de criar, de escrever e de pensar. Assim elaborou uma interessantíssima e ainda nunca superada “Gramática elementar do Galego Comum” publicada originariamente em castelhano (3) e umas “Normas Ortográficas e Morfológicas para o galego” que a RAG, dentro da qual estava desde 1954, adoptou como próprias em 1971.
Mas a sua mais importante etapa é a partir de 1975 na que propõe a adoção do que se deu em chamar uma proposta reintegracionista da língua, segundo a qual o galego faz parte do conjunto linguístico galego-português, percebido como uma única língua, e não duas, e consequentemente deve ser escrito seguindo as marcas gráficas, gramaticais e morfossintática que o português conservou e mantém na atualidade.
A morte do ditador nesse ano de 1975 motivaria uma ingente mobilização de energias contra ele que o levariam a ser novamente um proscrito dentro do mundo do galeguismo linguístico até a sua morte em 1990, mas nesses quinze anos de renascimento militante e consequente não estaria só, pois um importante número de resistentes que acreditavam nas suas teses foram criando grupos e associações que puseram uma base sólida que sentaria as bases para que o movimento por ele criado fosse crescendo até o ponto de não poder ser obviado e mesmo gerar uma academia em 2008, a AGLP, da qual nos honramos em fazer parte. Aliás, esse crescimento social está a gerar uma muito forte pressão nas instituições galegas que obrigou, mesmo, àqueles que antes o marginalizavam a reconhecerem o seu labor e a lhe dedicarem o ano de 2020 como o ano de Carvalho Calero, manifestado na dedicatória do Dia das Letras Galegas.
Mas este prolongado “introitus” não é tanto para reivindicar a figura de Dom Ricardo, que também, quanto introduzir uma série elementos epistemológicos que têm a ver com uma visão da história da nossa língua não convencional, nem considerada pelo “stablishment” dominante na Península Ibérica.
Essa gnoseologia nasceu já há séculos sob o poder do paradigma castelhanista que em diferentes graus atinge toda a Ibéria impondo-se como dogma de fé. Como é óbvio e por ser Dom Ricardo um poderoso regenerador do arquétipo e do protótipo da forma de visualizarmos e considerarmos a língua é de lei fazermos referência ao conceito que ele tinha da matriz Gallaecia, como um biotério onde fermentaram os romanços mais importantes da península e teremos de recorrer aos seus textos considerados heréticos até agora pelos gestores oficiais da língua. Não chega com considerarmos as variantes galegas e portuguesas como formas resultantes duma mesma língua ainda a dia de hoje, não. Consiste em pormos em valor a sua epistemologia completa e com ela o das suas origens.
No livro “Da fala e da escrita”, que Dom Ricardo publicou em 1983, durante os anos da censura “democrática” (4), com a promoção da AS-PG (Associaçom Sócio-Pedagógica Galega) presidida na altura pelo meu querido amigo, companheiro de academia e anteriormente professor de Pedagogia, José Paz Rodrigues (5), foi editada pela histórica “Galiza Editora”. Um dos capítulos é dedicado à origem da língua com o nome de “Gallaecia, viveiro de romanços” e nele comenta-se-nos o seguinte (6):
“Implantou-se, logo, o latim em Gallaecia sobre uns estratos nalguma medida influídos pelo domínio celta, pois celta ou para-celta é o indo-europeu hispânico. Recorrendo à necessária abstração, e com as cautelas e reservas que toda abstração implica, podemos falar, em consequência , dum latim gallaeco, do que se derivou um pré-romanço galaico, e mesmo um proto-romanço galeco, que se estendia, diversificado em distintas realizações do Atlântico à Cordilheira Ibérica.
Este pré-romanço ou proto-romanço teve que apresentar primitivamente duas variantes, a atlântica e a mesetenha; é dizer, o fundamento do galego e o fundamento do leonês. E ambos romanços, em contacto com formas idiomáticas exteriores, produziram duas inflexões ou dialetos que estavam chamados a eclipsar culturalmente, como consequência da suas fortuna política, as respetivas polas nas que agromaram, implantado sobre o substrato moçarábico lusitano, o galego deu origem ao português. Projetado sobre o adstrato euskara, convertido às vezes em substrato pela penetração política leonesa, ou em superestrato pelas vicissitudes da repovoação, o leonês deu origem ao castelhano. Português e castelhano seriam, pois, originariamente, dialetos fronteiriços do galego e do leonês, respetivamente. A Gallaecia seria um viveiro de romanços. Quando os nossos eruditos ou afeiçoados do século XX incidiam teimosamente no erro de considerarem o castelhano como um derivado do galego, não faziam mais do que confundir, segundo a exposição anterior, o galego com o galaico ou galeco. Deste, sim se derivaria o castelhano, mas não através do galego —galego-ocidental— embora sim através do leonês —galeco-oriental— (Carvalho Calero,R.: 1983: pp 16-17) (7)
Dom Ricardo concebia a família Ibero-romance como o conjunto de falares nascidos na antiga Gallaecia onde os parentescos se apresentavam nítidos para ele. Galaico Ocidental e Galaico Oriental eram as duas formas variantes dessa proto-lingua nascida no espaço ocupado pela Gallaecia tardo-romana, sueva e proto-medieval manifestadas como línguas plenas em tempos muito posteriores mas ligadas ao território que os historiadores galegos atuais identificam também com um Reino da Galiza alto-medieval e inclusivamente bem reconhecido e verificado durante a Idade Média plena. Completa Dom Ricardo a sua narração com o seguinte texto que continua o anterior:
Galaico Ocidental e Galaico Oriental
A relação, portanto, do galego e o castelhano seria muito estreita, como que o seu parentesco, a nível românico, é de segundo grau. O castelhano seria, não filho, mas sobrinho do galego. Os irmãos seriam o galaico ocidental, ou galego, e o galaico oriental, ou leonês. O galego, na sua fronteira sul, transformar-se-ia em português; como o leonês, na sua fronteira oriental, se transformaria em castelhano. A osmose entre irmãos —galego e leonês—, pais e filhos —galego e português e ainda leonês e castelhano—, tios e sobrinhos —galego e castelhano e ainda leonês e português— e co-irmãos —português e castelhano— é, portanto, doada e continua, como que a um certo nível todas estas formas romances são realizações do latim galaico (Carvalho Calero, R.: 1983: pp 18). (7)
Dom Ricardo tinha-o muito claro e assim o deixou escrito. Mas ele, para além de publicitar claramente uma forma de conceber as origens da nossa língua, hoje conhecida internacionalmente com o nome de português, deixa dito com diáfana expressão o vínculo galaico da outra língua ibero-romance. Algo que para um castelhano de hoje seria especialmente subversivo e mesmo, vistos os matizes racistas e supremacistas do nacionalismo espanhol clássico, até seria considerado ofensivo. Mas aí fica dito, nada mais e nada menos que por Dom Ricardo, o Professor que foi reprimido e censurado em épocas franquistas mas também censurado, ocultado, silenciado e marginalizado durante a etapa mais democrática da história do Estado Espanhol. Mas por se houvesse a mais mínima dúvida de ser esta narração dos factos histórico-linguísticos uma invenção gratuita dele, recorreremos em próximos textos a outros autores de não menos prestígio, mesmo internacional, cuja apresentação do organograma linguístico-familiar coincide com o exposto pelo nosso querido e admirado Dom Ricardo.
Será em breve, mas antes, para terem uma boa compreensão das cousas, vão lendo este texto.
Referências:
- Real, de “Rei”, mas não de “realidade”.
- Eu conheci Dom Ricardo, um 31 de janeiro de 1986 em Rianjo, com motivo do centenário do nascimento de Castelao. Eu era um rapaz de 23 anos e ele um lúcido aposentado de 76, quando a minha militância linguística me levou a admirá-lo imensamente mas daí em diante poucas vezes teve a oportunidade de falar com ele….só duas, acho, pois só quatro anos depois faleceria deixando-nos uma muito boa herança e um insuperável exemplo de coerência.
- https://books.google.es/books?id=YsMQggGe1KwC&printsec=frontcover&hl=es&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false
- Teremos de distinguir a que denominamos de “censura democrática” levada a cabo contra Dom Ricardo e os seus seguidores desde 1975 em adiante, da “censura franquista” nascida com a guerra civil contra a República em 1936 e continuada até 1975 em formas e graus diversos
- https://www.academiagalega.org/academia/membros-numerarios/333-paz-rodrigues-jose-1950.html
https://dialnet.unirioja.es/servlet/autor?codigo=333196
- Adapto à Norma do Acordo o texto de Carvalho Calero. Em origem está na norma denominada AGAL (Associaçom Galega da Língua), norma que durante épocas pré-AO usamos alguns galegos reintegracionistas. Só há algumas pequenas variantes a dia de hoje superadas ou em vias de superação, como por exemplo “umha/algumha/nengumha” por “uma/alguma/nenhuma”; terminações em “-çom/-çons” em vez de “-ção/-ções” ou “Canto/Cando/…” por “Quanto/Quando/…”
- Carvalho Calero, Ricardo.: Da fala e da escrita. Galiza Editora. Ourense. 1983