O texto sequente procura oferecer uma súmula acerca dos mecanismos de aplicação da Justiça entre o século XIV e XV, nomeadamente tribunais e agentes da coroa, no plano central e regional, tendo por base o trabalho de José Mattoso e de Armando Luís de Carvalho Homem.
Breve contextualização
Na baixa Idade Média portuguesa o poder judicial era conduzido a par com o poder legislativo e executivo, estando disperso por vários actores: o rei, os senhores e os condutores da vida concelhia. A partir do século XIV, enquanto parte do processo de centralização monárquica, instituíram-se órgãos, tribunais e magistrados específicos com vínculo ao monarca para regular a justiça nas várias unidades territoriais que compunham o reino. Estes mecanismos tinham jurisdições distintas, embora, muitas vezes, também se sobrepusessem. A “Casa do Cível”, a “Casa da Justiça da Corte” e a “Audiência da Portaria” eram tribunais, e as corregedorias, as ouvidorias e os juizados eram magistraturas compostas por oficiais judiciais.
A Casa do Cível
Provavelmente instituído por D. Afonso IV, tratava-se de um tribunal superior, com alçada sobre processos civis e criminais, fixado a num território e com jurisdição sobre todo o reino excepto sobre a zona onde estivesse a corte e os sítios que distassem cinco léguas da corte. Também eram excepção os crimes de Lisboa e do seu termo. Integrava sobrejuízes e dois ouvidores. Teve várias sedes, sendo a primeira em Coimbra (1362-1363), depois em Santarém (1364-1385), mais tarde alternou entre Santarém e Lisboa, e, por fim, estabeleceu-se em Lisboa, no reinado de D. Duarte.
Casa de Justiça da Corte ou Casa da Justiça D´el Rei
Tribunal supremo, itinerante, também provavelmente instituído por D. Afonso IV, com origem no desmembramento da cúria em dois tribunais. Foi contemporâneo da Casa do Cível e o seu funcionamento era oposto ao do tribunal do Cível, isto é, funcionava num raio de 5 léguas a partir do local onde a corte se encontrasse, acompanhando o rei e, assim, cumprindo a dimensão judicial do poder régio, no tocante a apelações civis e criminais.
Audiência da Portaria
Tribunal superior ao qual presidia o porteiro-mor, com funções essencialmente fiscais, mas também judiciais e económico-financeiras relativas à Fazenda real. Estavam também sob a sua alçada mouros e judeus. A partir de 1370, os ouvidores da Portaria passam a designar-se vedores da Fazenda.
Corregedorias e Ouvidorias
Eram magistraturas compostas por oficiais judiciais itinerantes, isto é, que circulavam pelo reino, pese embora, adstritos às suas jurisdições. No caso dos corregedores eram exclusivamente régios, no caso dos ouvidores, poderiam ser régios ou senhoriais. Quanto aos corregedores, a sua actuação era feita essencialmente nos Concelhos, mas também se estendeu aos senhorios privados. No caso dos ouvidores, estes tanto assessoraram outros oficiais régios, de foram exemplo os corregedores, como serviam de mediadores nos processos judiciais, ouvindo as partes envolvidas e tentando apurar a verdade. Mais tarde, certos tipos de ouvidores adquirem maior poder de ação.
Corregedores das comarcas
Magistrados judiciais colocados na vanguarda judicial das correções e comarcas. Segundo José Mattoso, primeiros já deveriam existir no reinado de D. Dinis, sendo de estirpe fidalga e com nos meirinhos-mores. Os corregedores foram regulamentados no reinado de D. Afonso IV, em 1332 e em 1340. No reinado de D. Afonso V, passaram-se a incluir grandes fidalgos no ofício (os “adiantados”) o que levou ao conflito com os juízes ordinário municipais e os vereadores das câmaras, que solicitaram a sua extinção, porém, sem efeito. Mais tarde, já no século XV, no reinado de D. João II, a esfera de actuação dos corregedores terá intervenção territorial em Portugal inteiro (Entre-Douro-E-Minho; Trás-os-Montes; Beira; Estremadura; Além-Tejo; Algarve), e para facilitar a mobilidade destes magistrados e o tratamento dos seus assuntos, algumas regiões alteraram a sua configuração, de que é exemplo Gaia, que em 1437 se separou da Estremadura para se ligar ao Porto, que era uma comarca incluída no Entre-Douro-e-Minho.
As funções dos corregedores eram exercidas nos limites da correcção para a qual estavam destacados, geralmente o da comarca, todavia em itinerância pelas vilas e localidades esse território. A sua actuação consistia na repressão de abusos, despacho de agravos, fiscalização da actuação dos juízes e tabeliães (outros oficiais régios), captura de malfeitores e respectiva execução de pena ou envio de nota de culpa aos juízes das terras onde cometeram os crimes. Os corregedores eram assistidos por meirinhos, ouvidores, chanceleres, escrivães, procuradores (ou advogados), tesoureiros, porteiros e carrascos, fazendo da figura do corregedor um séquito e não um singelo e solitário atuante.
Corregedores das cortes
Magistrados régios que seguiam o rei e tinham alçada sobre a localidade onde o rei estivesse bem como sobre o território circundante num raio de cinco léguas. Onde quer que o rei estivesse o seu poder sobrepunha-se ao das instâncias locais.
Ouvidores
Primeiramente foram magistrados encarregues de ouvir as partes de um processo e instruir processos, depois, no reinado de Afonso IV, passaram a deter a função, delegada, de julgar e emitir sentenças, passando a ser mais importantes do que os sobrejuízes, isto é, do que os oficiais dos tribunais.
Os ouvidores eram múltiplos, podendo sê-lo dos infantes, dos senhorios, das terras das rainhas, ou do rei. Segundo o trabalho de José Mattoso, há nota de conflitos com os corregedores e por parte dos concelhos, e, conforme explica o autor, talvez por sobreposição de jurisdições sobre determinadas matérias. Só com D. João II é que a palavra dos corregedores prevalece sobre a dos ouvidores. A actuação dos ouvidores supremos, os dos tribunais, era temida, dado que podiam ser enviados pelo rei para executar sentenças de morte.
Juizados ou “judicaturas”
Eram magistraturas às quais presidiam juízes, régios, senhoriais e concelhios, ordinários e especiais, da terra ou de fora – pessoas que podiam ser analfabetas ou titulares de grau universitário, mas com competências limitadas.
Outros oficiais judiciais
Os juízes de fora ou tabeliães. Os primeiros surgiram no reinado de D. Dinis, foram instituídos no reinado de D. Afonso IV, em 1327 e 1331 e incentivados depois da peste negra. Os segundos tinham origem recuada no século XIII, segundo as palavras de José Mattoso, “vindos de trás, omnipresentes no reino conforme se viu a propósito do cômputo da população, agentes de memória escrita oficial e vigilantes dos «estados das terras»” (p.313). Contudo obtiveram o primeiro regimento em 1305. Este era um cargo vedado a clérigos de qualquer estirpe. Eram parte do quotidiano local da sociedade, pese embora o seu papel tenha tido menos peso, mas não menos desmerecimento no processo de centralização régia.
Conclusões
A este ensaio assistiu apenas falar de uma parte da máquina do governo medieval, e muito brevemente, contudo, para terminar em perspectiva, serve o propósito o seguinte parágrafo conciso:
Estes mecanismos e respectivos agentes não funcionavam isoladamente, mas sim integrados numa estrutura de autoridade e poder mais abrangente, cada vez mais abeirada do monarca. As cortes e os conselhos eram as fontes de autoridade política, onde o Direito era fecundado. Essas instituições, a par do rei ou assistindo-o, procuravam equilibrar, negociar ou dirimir as vontades ou apelações das diferentes forças sociais do reino (nobreza, clero e terceiro estado), já o direito, a justiça (brevemente analisada neste texto), assim como a fiscalidade, a diplomacia e a guerra, eram as forças que executavam as decisões tomadas nesses órgãos de autoridade, fazendo-o através da sujeição, coação ou imposição.
Bibliografia
Homem, A. L. de C. (2009). Os oficiais da Justiça central régia nos finais da Idade Média portuguesa (ca. 1279-ca. 1521). Medievalista, 6, 1-18. Recuperado de: https://hdl.handle.net/10216/22480
Mattoso, J. (1997). Condicionamentos básicos. In Mattoso, J., História de Portugal. A monarquia feudal (1096-1480) (p.263-323). Vol. 2. Lisboa, Portugal: Editorial Estampa.
Mattoso, J. (1997). Realizações. In Mattoso, J., História de Portugal. A monarquia feudal (1096-1480) (p.405-457). Vol. 2. Lisboa, Portugal: Editorial Estampa.
Imagem D.R. British Library. Disponível em:
www.bl.uk/catalogues/illuminatedmanuscripts/ILLUMINBig.ASP?size=big&IllID=52837