Na investigação que realizamos sobre os primeiros 20 anos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) no Brasil, descobrimos raríssimas notícias em que a palavra-chave era “lusofonia”. Quando apareceu essa palavra, os registros nos dois maiores jornais brasileiros (Folha de S.Paulo e O Globo) remetiam para temáticas da cultura e aí se podiam enxergar uma fosca luz de que não apenas Portugal e Brasil falam em português, mas há uma comunidade profundamente entrelaçada por raízes históricas.
O que estou a dizer é que as raras notícias da área cultural desses jornais, associadas ao uso da palavra “lusofonia”, são como brechas a acionar marcas identitárias mais claras que envolvem o Brasil nessa comunidade, inclusive denunciando até o não interesse brasileiro pela CPLP. Vejamos alguns casos.
Na edição de 06 de novembro de 1999, a Folha de S.Paulo trouxe uma entrevista com os escritores Mia Couto, de Moçambique, e Pepetela, de Angola. Eles estavam no Brasil para participar de congressos e lançamentos das novas obras. No registro do jornal, Couto e Pepetela avaliaram sobre as dificuldades da produção da literatura portuguesa e comentaram sobre as ações políticas da comunidade lusófona.
Sobre a CPLP, Mia Couto reconheceu que “os pontos de convergência são muito frágeis se compararmos os pontos divergentes”. Para esse escritor, a comunidade que se pretende tem espaços econômicos, geográficos e políticos diferenciados e, aqui, ele arremata: “O Brasil não está preocupado com o sul da África” (Folha, 06/11/1999, p. 10).
No ano seguinte, na edição de 13 de março de 2000, a mesma Folha, em uma edição com a retranca/marca inicial do texto de “500 anos” que “comemorava o descobrimento” trouxe uma entrevista com Katia Mattoso, historiadora brasileira. Ela trata da “dívida do Brasil para com a África”, questão que será lembrada anos depois pelo presidente Lula. Mattoso defendeu que o Brasil precisa enfrentar sua história e começar a pensar não mais como lugar colonizado, mas como parte do Império Português. “O Brasil, desde o princípio do século 17, mantinha relações com a África no comércio de escravos. O tráfico realizado por Portugal só existiu no começo” (Folha, 13/03/2000, p. 10). Isso implicaria reconhecer que os brasileiros agiram diretamente como escravagistas. Para a historiadora, o Brasil precisa superar a ideia de vítima e isso ajudaria a resolver a discussão sobre nossas identidades.
Também na Folha de S.Paulo, em 2001, foi publicada uma notícia sobre o lançamento do livro “Moçambique”, do antropólogo Peter Fry. O jornal faz uma resenha da obra e apresenta a entrevista com o autor. Apesar do título, o livro não está dedicado somente a Moçambique, mas traz ensaios sobre os países africanos de língua portuguesa. Peter falou também sobre a CPLP. Recortamos um trecho dessa notícia:
“A distância que separa o discurso e a prática da CPLP é tanta que, há seis anos, Moçambique entrou na Comunidade Britânica. Uma ofensa, na visão portuguesa, mas, cercados de países de língua inglesa, os moçambicanos já mantinham relações com os britânicos e têm o seu futuro ligado ao da África do Sul, vizinha e potência regional. Nas enchentes do ano passado, os helicópteros de ajuda que chegaram foram os da África do Sul, depois da Comunidade Britânica e só então dos da CPLP”, explica Fry (Folha, 22/08/2001, Ilustrada, p. 5).
Em O Globo encontramos – embora bastante raros – registros de cultura que podem ser instrumentos para produzir alguma visibilização da lusofonia, sem recorrer a desqualificações – prática comum desses jornais – sobre essa comunidade, especialmente em relação à África lusófona. Por exemplo, em 06 de novembro de 2010, no caderno Prosa & Verso, O Globo traz a capa e mais uma página sobre o Fórum das Letras em Outro Preto/MG, evento que o jornal diz tentar “aproximar a África lusófona e o Brasil através da literatura”. No texto, Guiomar de Grammont, idealizadora do Fórum, pergunta: “Por que conhecemos tão pouco as literaturas de países de língua portuguesa, que a princípio seriam de acesso mais fácil para nós?” (O Globo, 06/11/2010, p. 1).
Mais adiante nessa notícia, Grammont afirma que “precisamos lutar contra o ostracismo ao qual a literatura em português é injustamente condenada”. Na apresentação gráfica desse registro no jornal, tem-se bandeiras dos países da CPLP, mas a do Brasil está fora do semicírculo formado por elas. Além de fora, está na parte de cima, o que pode indicar uma crítica ao distanciamento e ao não reconhecimento pelo Brasil dessa comunidade lusófona.
Além de tratar desse tema na capa do caderno, a notícia continua na página seguinte com uma entrevista com o escritor angolano Luandino Vieira, onde o título já indica uma visão crítica das relações históricas e identitárias dentro da comunidade lusófona: “Laços culturais forjados com violência”. O escritor alega que teve um livro censurado pela ditadura portuguesa e foi preso porque misturou o português com o kimbundu, língua em Angola. Luandino reconhece que “há uma dimensão cultural importante nos laços que ao longo dos séculos foram forjados, de maneira muito violenta” (O Globo, 06/11/2010, p. 1). Esse escritor fala da importância do Brasil na aproximação com a produção da África lusófona porque “as ligações entre o Atlântico Sul são históricas, vêm de muitos séculos” disse em O Globo.
O disco “Lusofonia”, lançado pelo artista carioca Martinho da Vila no ano 2000 foi alvo de notícia na Folha. Na edição de 12 de abril, o jornal informou que o álbum foi formado com a participação de artistas da comunidade lusófona, especialmente “os africanos”. Nesse registro, Martinho afirma que “pretende revelar aos brasileiros a música de outros países de língua portuguesa. Ainda que o Brasil seja um país negro, os artistas dos países africanos que falam português são mais populares na Europa do que aqui” (Folha, 12/04/2000, Ilustrada, p. 5). Isto é, além de revelar a ausência artística africana no Brasil, a notícia deixa enxergar uma África lusófona distante das marcas recorrentes de pobreza, doenças e crimes.
Também O Globo, em 06 de maio de 2014, publicou uma entrevista com Miguel Pinheiro, cientista e dramaturgo português que morava no Rio de Janeiro. Ele tinha uma companhia de teatro que circulava nos países lusófonos. Miguel se diz encantado pelo Brasil, mas avalia que “a questão da África no Brasil está mal discutida”, que é título desse registro. O dramaturgo diz que foi no Rio de Janeiro que ele percebeu o quanto a África é desconhecida no Brasil. Para ele, apesar da afrodescendência, “ainda falta muito para compreender a real influência desse continente neste país […] para o Brasil dar certo, ele tem que se conhecer por dentro e se conhecer lá fora” (O Globo, 06/05/2014, p. 2).
Outro registro significativo de cultura em O Globo de 20 de outubro de 2015 é “Angola chamando”. Esse texto mostra uma mobilização popular que pedia a libertação do rapper Luaty Beirão e de outros 14 ativistas angolanos. Eles estavam presos há quatro meses e faziam greve de fome há 32 dias. Todos foram detidos pelas forças do presidente José Eduardo dos Santos quando debatiam o livro “Da ditadura à democracia”, de Gene Sharp. A justificativa do governo para as prisões era a de que o grupo planejava um golpe de Estado. O jornal informa que os protestos em favor da liberdade dos ativistas tinham chegado aos países lusófonos, por meio da Anistia Internacional. No entanto, ocorrem apenas manifestações pontuais em Portugal, durante um festival literário. Na notícia, informa-se que nem a CPLP nem o Governo do Brasil se manifestaram. Destaca-se no registro uma curta fala do escritor Pepetela: “A África só é conhecida no Brasil pelas desgraças. Teria de haver uma mudança nos meios de comunicação e mais esforço nas escolas para que as pessoas apreendam que a África é um grande continente e não um país” (O Globo, 20/10/2015, p. 2).
De maneira geral, as notícias da editoria de cultura reduzem significativamente uma ancoragem para o regime de visibilização de uma África lusófona miserável, corrupta, doente, suja, criminosa. Essas associações não desaparecem, mas estão mais visíveis nos registros que envolvem os presidentes da República, os acordos institucionais e os conflitos. Nas raras notícias em que se associou lusofonia e cultura, podem-se enxergar, mesmo que muito timidamente, a possibilidade de uma comunidade.
Investir amplamente na visibilização da cultura lusófona parece ser um dos caminhos para o reconhecimento da própria lusofonia e dessa comunidade.
Imagem: Icarissimi – foto de uso gratuito Pixabay