EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish
EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish

(Título não autorizado)

(Título não autorizado)

As feministas são mais propensas ao sexo anal”, afirma uma personagem feminina, com sarcasmo. Ou será que ela tem razão?

A pergunta contida no cabeçalho deste artigo é uma provocação condizente com a perspectiva discursiva do filme que, no Brasil, foi rebatizado como “Bela Vingança”. Além de criar expectativas deturpadas em relação à trama, essa translação ofende a magnificência sintética do título original, ‘Promising Young Woman’ (‘Jovem Mulher Promissora’, em tradução livre). Dirigido pela estreante em longas-metragens Emerald Fennel, este filme tornou-se uma das obras mais badaladas do ano 2020. Com razão, aliás!

Surpreendentemente indicado em quatro categorias importantes do prêmio Globo de Ouro (Melhor Filme Dramático, Melhor Direção, Melhor Atriz e Melhor Roteiro), “Bela Vingança” ajudou a concretizar algo histórico – e muitíssimo importante: pela primeira vez, dentre as cinco indicações destinadas a Melhor Direção, três delas foram ocupadas por mulheres. O filme chega num momento mais que pontual, adequadíssimo.

A fim de não estragar as suas reviravoltas e a genialidade tangencial de sua execução, convém não falar muito sobre a condução enredística do filme. Ao invés disso, é prudente agarrar-se às pistas falsas do título brasileiro, que é involuntariamente exitoso ao confundir ainda mais as fronteiras de gênero desta obra, que flerta com a violência espetacularizada dos filmes B e com o refinamento quase cartunesco da estética ‘neon noir’. Por vezes, até parece uma comédia satírica, mas é um drama pesadíssimo, sobre o peso insustentável de alguns traumas. Ou pior: sobre a diferença de intensidade conseqüencial destinada a homens e mulheres quanto à responsabilização por seus atos ébrios…

Em termos bastante sinópticos, “Bela Vingança” é sobre uma mulher que finge estar bêbada nas festas, a fim de ser propositalmente molestada por homens que fingem estar bem-intencionados apenas para estuprarem-na. O que ela faz com estes homens é apenas intuído, não explicitado. O que, desde o início, confere uma aura de inverosimilhança à trama e à composição da protagonista (muito bem interpretada por Carey Mulligan), que abandonou a Faculdade de Medicina para trabalhar como atendente numa cafeteria. Pergunta inicial: por quê?

Não obstante a excelente atriz Carey Mulligan parecer um tanto mais velha que a sua personagem, ela encarna muito bem a sanha aparentemente justiceira da mesma, que deseja muito menos a vingança que a possibilidade de “seguir em frente”, como dizem-lhe mais de uma vez. E esta não é a única frase chavonada de auto-ajuda que aparece no filme: de maneira consciente, são inúmeros os momentos em que ouvimos os jargões “tu precisas se acalmar” e “eu era apenas uma criança” ao longo da narrativa. Na vida real, quantas vezes não nos dizem esse tipo de frase pseudo-apaziguadora quando tentamos defender-nos de uma situação revoltante? Sim, o filme é exatamente sobre isso!

Numa decisão extremamente acertada, a diretora compensa a evidente inverosimilhança da trama com plasticidade, através de emulações da cultura ‘pop’. Poucas vezes em Hollywood, canções interpretadas por musas de gerações adolescentes foram tão magistralmente ressignificadas: logo na abertura, “Boys”, de Charlie XCX, executada enquanto vemos os ventres dançantes de diversos homens, potenciais assediadores; noutro instante, “Stars are Blind”, na voz de Paris Hilton, cantarolada por um casal que diverte-se bastante enquanto faz compras na loja de conveniência de uma farmácia; e, por fim, uma readequação instrumental sublime de “Toxic”, da Britney Spears, que converte em fúria de violinos aquilo que a protagonista (e, por extensão, o público) sente. Isso para ficar apenas nalguns exemplos sobremaneira conhecidos: a trilha musical do filme é esplêndida!

Em determinado momento do roteiro, aparece uma contagem na tela, o que traz à tona a efetivação de um projeto de vingança. Este, porém, é logo redirecionado, tendo em vista uma escandalosa – porém, previsível, em termos realistas – revelação gravada em vídeo, através da câmera de um telefone celular. Quando a clássica canção “Angel of the Morning”, na voz de Juice Newton, aparece na banda sonora, temos o que parece um clímax vingativo, de fato. Na letra, uma advertência importante: “não existirão cordas para amarrar suas mãos/ Não se meu amor não puder amarrar seu coração/ Não há necessidade de tomar uma atitude/ Porque fui eu que escolhi começar”… Alguém realmente vence quando uma vingança é comemorada?

Para além de seus méritos feministas (sim, este adjetivo precisa ser enfatizado aqui), “Bela Vingança” é um filme que também detecta as contradições inerentes ao sobejo de reivindicações atacantes, no âmbito que desembocou no que hoje conhecemos como “cultura do cancelamento”. Nalguns sentidos, o filme abarca esta temática, mas para demonstrar como as mulheres são muito mais vitimadas pelo referido cancelamentismo, mesmo quando têm razão em suas demandas combativas. Sendo assim, é uma obra que está sendo alvo de ataques óbvios e de um polemismo que visa ao protecionismo machista contra o qual ele interpõe-se frontalmente. É um filme equivocadamente genial, portanto. Tão brilhante e incisivo quanto a maquiagem intencionalmente exagerada da protagonista!

Wesley Pereira de Castro.

Nota: O título original deste artigo é “As feministas são mais propensas ao sexo anal”, afirma uma personagem feminina, com sarcasmo. Ou será que ela tem razão?” tendo sido adaptado para a publicação.

 

Descarregar artigo em PDF:

Download PDF

Partilhar este artigo:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on email
Email

LOGIN

REGISTAR

[wpuf_profile type="registration" id="5754"]