Os documentários brasileiros sobre grandes músicos constituem um subgênero recorrente, mas nem sempre funcionam, qualitativamente, pois geralmente incorrem numa atitude tão automática quanto equivocada: a tendência a elogiarem o artista biografado de maneira superlativa. Mesmo quando eles merecem os encômios exacerbados, isso não é devidamente contributivo, em termos documentais, de modo que é uma exceção mui proveitosa um filme como “Luiz Melodia — No Coração do Brasil” (2024, de Alessandra Dorgan), produção que respeita aquilo de mais notável na trajetória do artista, que é a sua originalidade. Chama positivamente a atenção o fato de não haver uma narração em ‘off’, proveniente de alguma figura de autoridade, com voz empostada: quem comenta os eventos de sua vida e carreira é o próprio Luiz Melodia [1951–2017], através de depoimentos antigos, magistralmente resgatados.
Nascido num dia 07 de janeiro — o que justifica o seu pendor enquanto capricorniano (que ele comenta, eventualmente) — Luiz Carlos dos Santos apropriou-se meritoriamente do sobrenome artístico de seu pai, o sambista Oswaldo Melodia, ainda que este, inicialmente, não desejasse que ele seguisse a carreira artística. Advindo do Morro de São Carlos, no bairro Estácio, uma zona boêmia na capital do Rio de Janeiro, Luiz Melodia não queria ser apenas um sambista, preferindo dedicar-se a uma fusão criativa de gêneros, como jazz, blues e até mesmo o ‘rock’, em suas composições. Em 1973, aos vinte e dois anos de idade, lançava o seu primeiro álbum, o icônico “Pérola Negra”, depois de ter algumas de suas canções gravadas por Gal Costa [1945–2022] e Maria Bethânia, entre outros artistas. Logo ele teria problemas com as exigências limitadoras dos produtores fonográficos, entretanto.
No documentário, vemos Luiz Melodia em uma apresentação musical, logo na abertura: ele fala que dançar é uma maneira de resistir à ascensão cotidiana da violência, e comenta que a inatividade da plateia, em seu concerto, é também uma maneira de violência. Sorri enquanto conversa com o seu público, demonstrando um entrosamento sincero e uma paixão por aquilo que está fazendo, no palco. Ao longo do documentário, que dura apenas setenta e cinco minutos, vários entrevistadores comentam o hiato que ocorre entre os lançamentos do cantor, afinal explicado por sua relutância em ceder às convenções industriais: ele canta apenas aquilo que deseja cantar. E, quando consegue se apresentar num evento lotado, não titubeia: “estou aqui graças a mim”!
Responsável por obras-primas cancionais como “Estácio, Holly Estácio” (popularizada por Maria Bethânia), “Juventude Transviada” (que se converteu em êxito de audiência, quando foi tema da telenovela “Pecado Capital”, em 1975), “Fadas” (em colaboração com Elza Soares), “Ébano” e “Magrelinha”, para ficar apenas num punhado célebre de títulos, Luiz Melodia é celebrado em toda a sua versatilidade, no filme. Fala sobre a sua amizade fundamental com o poeta Torquato Neto [1944–1972] e com o músico Sérgio Sampaio [1947–1994], que lhe dedicou uma canção celebratória, em 1982, chamada “Doce Melodia”. Todos eles eram considerados “artistas malditos”, pelo modo como evitavam as facilidades do que poderia lhes conceder sucesso comercial. Ao invés disso, eles preferiam ser fiéis ao que lhes apeteciam, tal como Luiz foi fiel à sua esposa Jane Reis, também compositora e produtora musical, ao lado de quem ele esteve de 1977 até o ano de sua morte. Ambos são pais do ‘rapper’ Mahal Reis.
Em determinado momento de sua vida, por conta do sucesso acachapante de ‘Juventude Transviada”, Luiz Melodia decide se refugiar na Bahia, onde grava o álbum “Mico de Circo” (1978), cujo lançamento foi acompanhado de uma celebração local. Conduzido por ele próprio, o filme destaca a sua importância, ainda subvalorizada, no panorama musical brasileiro, enfatizando a sua singularidade produtiva, que lhe garantiu um Disco de Ouro, correspondente à vendagem de milhares de cópias, graças ao lançamento do álbum “Acústico (Ao Vivo)”, em 1999. A diretora do documentário, através de uma montagem excelente e de uma insigne pesquisa de arquivos, concentra-se naquilo que é, de fato, relevante na biografia do cantor, inserindo, inclusive, cenas de longas-metragens em que ele teve marcante participação enquanto ator, como “Quase Dois Irmãos” (2004, de Lúcia Murat) e “Casa de Areia” (2005, de Andrucha Waddington). Luiz Melodia foi um artista completo, e recebeu um documentário à altura de seu talento!
Wesley Pereira de Castro.
Fonte da imagem: https://cultura.uol.com.br/upload/radio/estacaocultura/20250115151653_lluiz-melodia-document-rio-no-cora-o-do-brasil-3-.png