As indicações obtidas pelo filme “Ainda Estou Aqui” (2024, de Walter Salles) no Globo de Ouro, junto aos mais de dois milhões de espectadores que ele alcançou na bilheteria — um feito surpreendente! —, reacenderam o debate sobre as dificuldades de comunicação com o público e a interferência de premiações estrangeiras no reconhecimento de obras nacionais. Se, por um lado, continua a ser difundido o preconceito de que “cinema brasileiro só tem putaria”, por outro, a temática desta obra em particular (que aborda o período ditatorial no país) desencadeou forte comoção espectatorial, além de ameaças de boicote, advindas de militantes de extrema-direita que, em mais de uma oportunidade, externaram o seu desdém pelos filmes produzidos no Brasil. A despeito disso, o filme segue chamando a atenção de público e crítica, num ano de lançamentos cinematográficos que contou com interessantes e variegadas opções, como “Estranho Caminho” (2023, de Guto Parente), “O Dia que Te Conheci” (2023, de André Novais Oliveira) e o excelente “Greice” (2024, de Leonardo Mouramateus), este último com locações em Portugal.
Infelizmente, a relação entre qualidade produtiva e sucesso de bilheteria é cada vez mais assimétrica, de modo que “Cidade; Campo” (2024, de Juliana Rojas) — apesar de ter recebido um prêmio de Melhor Interpretação Feminina, para Fernanda Vianna, no Festival de Cinema de Gramado, e de receber um prêmio de Melhor Direção, numa mostra paralela do Festival Internacional de Cinema de Berlim — foi pouquíssimo visto. E é uma ótima produção, com um roteiro muito inteligente, dividido em duas tramas independentes, que justificam o título: uma delas, sobre o êxodo forçado do campo para a cidade; a outra, sobre uma migração intencional da cidade para o campo…
Dirigido pela mesma responsável pelos magistrais “Trabalhar Cansa” (2011) e “As Boas Maneiras” (2017), ambos em co-direção com Marco Dutra, além do inusitado musical “Sinfonia da Necrópole” (2014), “Cidade; Campo” aproveita a familiaridade da diretora com o gênero terror, ainda que os enredos de ambas as tramas sejam eminentemente dramáticos. No primeiro dos casos, acompanhamos a ida de Joana (Fernanda Vianna) para a casa de sua irmã, depois que a sua propriedade rural foi inundada após o rompimento de uma barragem, em Minas Gerais. Tendo perdido tudo, ela precisa recomeçar a sua vida do zero, conforme repetido e aplaudido pelas pessoas com quem conversa. Encontra um emprego num aplicativo de faxinas e preenche o seu tempo de ócio observando os vizinhos, que, como ela, também precisam acordar cedo para trabalhar…
O segundo segmento de “Cidade; Campo” mostra o entrosamento romântico entre Flávia (Mirella Façanha) e Mara (Bruna Linzmeyer), depois que ambas se mudam para o sítio do pai da primeira, após o falecimento dele. Neste local, Flávia descobre que seu pai tinha interesse por experiências envolvendo o consumo de ayahuasca e, partir daí, passa a ter visões no ambiente, tanto do pai falecido quanto de outras entidades, enquanto Mara, que é veterinária, decide ir embora, pois alega que aquele lugar “está cercado de morte por todos os lados”. Flávia insiste em permanecer, entretanto, e, num desfecho distinto da primeira estória, consegue encerrar um ciclo problemático em sua vida. O diferencial no modo como a diretora narra ambos os enredos está em sua afeição indisfarçada pelas personagens, no elã feminista do roteiro, e no cuidado direcionado aos detalhes do cotidiano, como a observação de um corpo celeste que se aproxima da Lua, percebido em ambos os episódios. Uma fotografia de Flávia aparece numa das casas que Joana limpa, no primeiro segmento, o que concatena tangencialmente as duas situações de redescoberta. A sequência em que as namoradas dançam ao som de “Temporal de Amor”, da dupla sertaneja Leandro & Leonardo, é simplesmente antológica!
Aproveitamos esta deixa para finalizar a nossa série de artigos sobre a quadrilogia de filmes baseada nas novelas reunidas no livro “Um Ano Inesquecível”, conforme iniciado aqui: baseado em “Amor de Carnaval”, da carioca Thalita Rebouças, “Um Ano Inesquecível: Verão” (2023, de Cris D’Amato), tanto quanto os demais títulos da cinessérie, efetiva mudanças consideráveis na adaptação. Neste caso específico, elas são mui alvissareiras, no sentido de que o texto original é o menos interessante da coletânea. O filme, por sua vez, é divertido na maneira como nos faz torcer por Inha (Lívia Inhudes), a filha de um político conservador de cidade de interior (interpretado por André Mattos) que, em seu sonho de ser aceita numa pós-graduação de Moda, em Paris, inscreve-se como voluntária numa escola de samba e, após um batismo de purpurina, apaixona-se pelo escultor de alegorias Guima (Micael Borges). Ocorre que ele é ex-namorado da estilista internacional Carrie (Mariana Rios), o que desencadeará uma série de mal-entendidos, envolvendo inclusive a repressão homossexual de Tavinho (Diego Martins), irmão de Inha. Ao final, obviamente, tudo se resolverá em meio ao samba. Não é um filme notável por sua criatividade — pelo contrário, é entulhado de clichês cômicos e românticos —, mas, dentro de seu nicho juvenil, merece ser melhor conhecido, sobretudo por demonstrar a habilidade dos realizadores brasileiros até mesmo na reciclagem de fórmulas hollywoodianas. É um corolário da tendência à cópia, no afã pelo arrebanhamento de públicos viciados nos mesmos enredos, mas, tanto quanto os demais capítulos desta quadrilogia, possui algum charme, na maneira como desvela as obsessões estilísticas dos responsáveis por sua produção. É algo a ser aplaudido, portanto: viva a diversidade do cinema brasileiro!
Wesley Pereira de Castro.