Em 2024, o dia 20 de novembro converteu-se em feriado nacional, pela primeira vez no Brasil, quando se comemorou o Dia da Consciência Negra. Escolhida em homenagem ao líder quilombola Zumbi dos Palmares [1655–1695], que faleceu neste dia, há mais de trezentos anos, esta data tem por finalidade chamar a atenção da sociedade brasileira para a permanência do racismo em nosso cotidiano, seja em âmbito estrutural, no que tange à predominância midiática dos estereótipos valorativos da branquitude, seja em viés estatístico, visto que não há um único dia em que os telejornais não apresentem “casos isolados” de negros mortos em operações policiais. Não surpreendente mas revoltantemente, houve quem discordasse da implantação deste feriado (transferindo-o para outra data, conforme ocorreu numa prefeitura gaúcha), de modo que, na Internet, pululou a mesma pergunta programada: “e por que também não existe um Dia da Consciência Branca?”…
Diante de uma situação como esta, é defensável que o ator baiano Lázaro Ramos, em sua segunda incursão na direção de longas-metragens, tenha realizado modificações significativas no enredo de “O Som dos Sentimentos”, de Babi Dewet — segunda novela da coletânea literária comentada aqui —, ao convertê-lo no filme “Um Ano Inesquecível: Outono” (2023). Em vez de apenas reciclar a trama simplista do texto original, sobre uma adolescente que tenciona estudar Direito e que não gosta de música, mas que termina se apaixonando por um cantor de rua, ele insere várias falas potentes nos discursos de seus personagens, que alegam precisar “hackear o sistema”, utilizando as mesmas ferramentas de seus opositores, mas com diferentes estratégias de inserção.
Se, no livro, a protagonista Anna Júlia possui cabelos castanhos com mechas azuis, e seu pretendente João Paulo é ostensivamente louro, no filme, ambos são negros e conscientes das questões identitárias: Anna Júlia (Gabz), agora, é uma jovem adulta, recém-ingressa na Universidade, que evita conversar com sua mãe (vivida pela cantora Iza), depois que ela abandonou o marido Guilherme (Bukassa Kabengele) para erigir a sua carreira musical. A aversão da personagem às canções é justificada internamente, mas ela não consegue driblar os delírios coreográficos, que se insurgem numa das avenidas mais movimentadas do país; João Paulo (Lucas Leto), por sua vez, tem uma banda ao lado de amigos, mas é abandonado por eles, depois que demonstra interesse na participação de um festival que requer a composição de canções autorais. Pedindo ajuda ao seu mentor Lulu Santos, em participação especial — que diz que “celular emburrece” —, João Paulo encontra uma imediata inspiração, quando conhece Anna Júlia, mas precisará lidar com as ambições profissionais da rapariga, que se envolve numa questão judicial envolvendo a retomada patrimonial de um prédio ocupado por Dindinha (Bibba Chuqui) e diversas famílias.
Roteirizado com a colaboração de Caroline Fioratti, este filme aproveita diversos clichês das típicas comédias românticas estadunidenses, mas privilegia os embates identitaristas, havendo uma cena em que Anna Júlia é confundida com uma copeira, no local onde trabalha, e um instante em que a advogada que comanda o escritório, Sophia (Larissa Luz), precisa provar para um garçom que é capaz de pagar por uma determinada marca de vinho tinto. Além disso, vários coadjuvantes são homossexuais e as influências cancionais de João Paulo — bem como do pai de Anna Júlia — são predominantemente negras: no livro, louva-se The Beatles, OneRepublic e Ed Sheeran; no filme, Cassiano, Emicida, Gilsons e os irmãos Rica e Gui Amabis, estes últimos responsáveis pela trilha sonora original do filme. Que estejamos diante de um musical brasileiro, já é algo digno de menção, mas, ao utilizar pretextos convencionais para emular uma reeducação antirracista na platéia juvenil, “Um Ano Inesquecível: Outono” é mais um título da quadrilogia financiada pela Amazon Prime Vídeo que consegue superar tematicamente a sua inspiração literária.
Para além de suas intencionais limitações distributivas — é um “filme de nicho”, voltado ao público adolescente —, esta produção escancara preconceitos indisfarçados do público pagante, que reclama da “infidelidade” do roteiro quanto ao texto original e que, a despeito das personalidades envolvidas, contribui para que o filme não seja tão visto quanto merece. Ele é problemático em muitos aspectos, principalmente no que diz respeito à facilidade com que Anna Júlia se infiltra na ocupação, ajudando Dindinha e sua filha a cozinhar, mas traz para o primeiro plano questões que merecem ser debatidas, de uma maneira mais orgânica que o trabalho anterior do diretor, “Medida Provisória” (2020), muitíssimo bem-intencionado, mas irregular em execução. Neste segundo trabalho directivo no cinema, Lázaro Ramos expandiu aquilo que efetivou, como intérprete, no filme “Ó Paí, Ó” (2007, de Monique Gardenberg), em termos de combinação entre a simpatia associada às convenções de gênero e a necessidade de apregoar militantemente contra o que nos faz mal, no dia a dia. Não se nega que seja apenas um filme mediano, porém merecedor de afeto, em meio à pletora de produções similares e discursivamente esvaziadas que encontramos nos serviços de ‘streaming’!
Wesley Pereira de Castro.