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“Se rezar, passa?” Nem sempre. Mas, no cinema brasileiro, cada tentativa é válida”

“Se rezar, passa?” Nem sempre. Mas, no cinema brasileiro, cada tentativa é válida”

Para o dia 13 de outubro de 2019, está anunciada a canonização de Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes (1914-1992), mundialmente conhecida como Irmã Dulce. Nascida no Estado brasileiro da Bahia, ela chegou a ser indicada para o prêmio Nobel da Paz em 1988, por causa de seu continuado trabalho de amparo aos pobres, além de ter fundado o Hospital Santo Antônio, na cidade de Salvador. Dedicou toda a sua vida à caridade, e não tardaria para que se tornasse objeto de um filme biográfico. Pena que aquele que foi realizado a partir de sua vida seja indigno de sua trajetória na Terra…

Protagonizado pelas atrizes Bianca Comparato e Regina Braga – que interpretam a religiosa em fases diferentes de sua vida – o filme “Irmã Dulce” (2014, de Vicente Amorim) obteve uma bilheteria considerável, para os padrões internos do Brasil, e foi nomeado a algumas premiações técnicas, mas padece de um mal lamentavelmente recorrente nos filmes religiosos produzidos no País: parece não acreditar suficientemente em seu tema. A encenação dos eventos escolhidos para serem tramaticamente reconstituídos é efetivada de maneira tão frenética quanto impessoal, e o diretor não esconde o seu ateísmo constitutivo. É um filme sem fé, portanto.

A despeito da extrema importância da freira no Brasil, o roteiro escrito por Anna Muylaert e L. G. Bayão opta por um cruzamento entre situações de burocracia eclesiástica e o relacionamento maternalista entre a religiosa e o menino abandonado João (Amaurih Oliveira), de modo a culminar no clímax demarcado pela primeira visita do papa João Paulo II (1920-2005) ao Brasil, em 1980. Inicialmente, Irmã Dulce não fora convidada para a cerimônia, mas João e seus companheiros conseguem favorecer a religiosa, que comparece ao evento de maneira congratulatória, e o reconhece na platéia, em meio a centenas de católicos. Detalhe: este personagem em particular é fictício, condensando cacoetes vitais de vários dos garotos que ela acolheu. O que isso implica? A falta de confiança do enredo, mais uma vez, nos méritos reais de sua personagem. Um problema generalizado do cinema brasileiro histórico, em verdade.

Tal qual ocorre em qualquer país, um dos passos mais recomendados para consolidar a nacionalidade de uma indústria cinematográfica é investir nas biografias de pessoas famosas. Ainda que isto não assegure qualidades autorais – muito pelo contrário: em boa parte dos casos representados, a tendência ao melodrama aparece como chamariz dominante nas cinebiografias –, os filmes que reconstituem eventos já conhecidos do público tendem a chamar a atenção de grandes platéias, além de consolidar as carreiras de alguns intérpretes. Nos últimos anos, por exemplo, foram bastante comentados, no Brasil, filmes que biografaram o ex-presidente Getúlio Vargas (1882-1954), a cantora Elis Regina (1945-1982), o líder espírita Chico Xavier (1910-2002) e até mesmo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para 2019, um dos filmes brasileiros mais esperados é aquele que reconstitui a trajetória da cantora e apresentadora de TV Hebe Camargo (1929-2012), que estreará neste mês de agosto, no Festival de Cinema de Gramado. Tudo indica que receberá alguma láurea, sendo a intérprete Andréa Beltrão uma das favoritas, na categoria de Melhor Atriz.

Voltando a “Irmã Dulce”: se, por um lado, este filme merece ser recomendado por abordar a saga de uma importantíssima personalidade brasileira, por outro, ele soçobra as expectativas dos espectadores ao desrespeitar o seu potencial dramático. Em mais de um sentido, é um filme convencional, repleto de clichês e elaborado de maneira mecânica. A protagonista, por exemplo, malgrado a sua irrevogável fé cristã, é construída sem profundidade, sendo as relações estabelecidas com seus familiares bastante vagas: em ‘flashbacks’, acompanhamos ela preocupar-se com o avanço da doença pulmonar de sua mãe moribunda (interpretada por Glória Pires); e, nos anos derradeiros de sua vida, percebemos a proximidade de sua irmã e de seu pai (interpretados por Zezé Polessa e Gracindo Júnior, respectivamente) no auxílio das causas sociais que apregoa. Mas é tudo muito vago, da mesma maneira que acontece quando ela envolve-se num conflito episcopal, quando as suas freqüentes saídas do claustro interferem em suas obrigações litúrgicas. Como o filme resolve isso? Mostrando a freira ameaçando uma estátua de Santo Antônio. Ao invés das orações prometidas, chantagens oportunistas. É um filme sem fé, necessário repetir.

Enxergando os defeitos deste filme sob o panorama produtivo, detectamos algumas chagas evidentes no ‘modus operandi’ da Globo Filmes: apesar de ser filmado na Bahia, as protagonistas são sudestinas; os eventos nacionais são comentados onipresentemente pelos telejornais da Rede Globo, numa tentativa concomitante de autocelebração; e as seqüências de ação são filmadas de maneira televisiva, numa pletora desagradável de cortes de montagem. Entretanto, estes mesmos defeitos poderiam ser secundarizados se a peça cinematográfica, como um todo, ajudasse a consolidar uma tradição espectatorial, em que os filmes brasileiros despertassem a atenção de seus compatriotas. Neste sentido, ver filmes ruins é uma necessária atividade política. Afinal, são eles que impulsionam o financiamento de produções autorais, infelizmente restritas aos circuitos alternativos de exibição. Voltaremos a este assunto…

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