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“Se alguém me perguntasse ‘qual é a tua religião?’, eu responderia: ‘a infância’!”

“Se alguém me perguntasse ‘qual é a tua religião?’, eu responderia: ‘a infância’!”

A declaração acima foi proferida pelo cineasta baiano Haroldo Borges, num dos eventos de divulgação do filme “Saudade Fez Morada Aqui Dentro” (2023), quando alguém, na plateia, fez um comentário sobre o que foi aprendido durante a convivência com seu elenco adolescente. A emoção contida nesta fala espelha aquilo que é sentido pelo público, diante do longa-metragem em pauta. Premiado em mais de um festival internacional, este filme surpreende pela delicadeza com que aborda a situação central, a cegueira progressiva de um garoto de quinze anos, que mora num povoado do sertão da Bahia, na região Nordeste do Brasil. E qualquer elogio que façamos neste texto será ínfimo, frente ao extremo impacto afetivo que o filme provoca em nós!

Protagonizado por um elenco espontâneo, que empresta os próprios nomes aos seus personagens, “Saudade Fez Morada Aqui Dentro” apresenta-nos aos dois filhos da abnegada Wilma (Macêdo), Bruno (Jefferson) e Ronnaldy (Gomes), que passeiam de bicicleta na sequência inicial, até que começam a comparar os seus respectivos desempenhos amorosos. Trata-se de uma maneira eficaz de apresentar tanto a camaradagem inequívoca entre os dois irmãos, quanto a tentativa de eles se desviarem de uma chaga iminente: o fato de que Bruno está perdendo a visão!

Sem aderir ao puxa-saquismo, Ronnaldy está sempre próximo a Bruno, e defendendo-o ou apoiando-o em decisões difíceis. Wilma consulta diversos especialistas oftalmológicos, mas é obrigada a lidar com o diagnóstico de que a doença de Bruno é irreversível. Após mantê-lo afastado da escola por um ano, por conta da necessidade de exames e das constantes viagens à capital do Estado, esta mãe decide matriculá-lo novamente, e testemunha uma situação delicada no primeiro dia de aula: vários professores discutindo as dificuldades que Bruno enfrentará em seu aprendizado, como se ele não estivesse lá. É a deixa para que ele saia emburrado do cômodo onde estavam os docentes, sentindo-se desconfortável por não saber como se adequar às novas condições (sentar-se na frente da sala, receber provas impressas com letras aumentadas, etc.) exigidas por sua doença. Para tal, o apoio de sua amiga Ângela (Maria) será essencial…

Esforçando-se para enturmar Bruno, após constatar que ele esteve ausente por muito tempo naquela localidade, Ângela convida-o para uma festa, onde ele se apaixona por Terena (França), que está apenas de passagem pela região. Ocorre que Terena envolver-se-á romanticamente com Ângela, o que fará com que Bruno experimente sensações que não compreende adequadamente: deveras irritadiço, pois terá que desistir do sonho de ser desenhista, já que está ficando cego, Bruno profere comentários machistas contra as garotas que jogam futebol consigo e desconfia da homossexualidade de um professor, Vinícius (Bustani), que é justamente quem se oferece para ensinar-lhe Braille. Ao mesmo tempo, ele desenvolve uma percepção distinta acerca de seu cotidiano, como quando sua mãe o convida para admirar um simples pôr-do-sol, no quintal, ou quando o pai de Terena (interpretado por Heraldo de Deus) chama a sua atenção para uma casa aparentemente abandonada, onde vive uma mulher que sente saudade de alguém. Logo, o próprio Bruno confrontará esta saudade, em sua intimidade, por não ser mais capaz de visualizar os detalhes para os quais nunca dera muita importância (o instante em que ele sobe numa árvore com Ângela, para observar a paisagem, por exemplo). Outras percepções serão instauradas e, neste sentido, o momento em que — mais uma vez, ao lado de Ângela — eles banham-se sob a chuva é epifânico!

Produzido pela mesma equipe de amigos que realizou os ótimos “Jonas e o Circo Sem Lona” (2015, de Paula Gomes) e “Filho de Boi” (2019, co-dirigido por Haroldo Borges e Ernesto Molinero), “Saudade Fez Morada Aqui Dentro” é um filme que faz jus à potência poética de seu título. A despeito de acontecerem situações que, noutro tipo de desenvolvimento tramático, poderiam desencadear conflitos duradouros (uma briga entre namoradas, a própria cegueira de Bruno, a cena em que ele é abandonado por Ângela num local ermo), o roteiro – escrito pelo diretor e por Paula Gomes — é marcado pelo improviso, por uma impressionante naturalidade nas atuações, a ponto de, em inúmeros momentos, pensarmos tratar-se de um documentário. O modo desenvolto como os personagens comunicam-se entre si, as gírias nordestinas, a maneira como eles se reconciliam após breves desentendimentos e as questões transversais ao enredo — que denotam uma arrebatadora compreensão do conceito de política orgânica, por parte dos envolvidos — tornam este filme uma dos melhores e mais fascinantes obras brasileiras contemporâneas, permeada por uma noção mui aplicável de esperança, no modo como os irmãos lidam com os seus problemas, sem que haja sequer uma menção a quem seria o pai deles. A imagem final, paralisada no auge de uma ação, é magistral, confirmando a excelência do diretor na abordagem do que tematiza e na crença transformadora no ser humano. Um filme recomendadíssimo, portanto!

Wesley Pereira de Castro.

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