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Medo, dor, perda, vitimização, ressentimento… e aquilo que precisamos aprender com a História! (um vívido elogio fassbinderiano)

Medo, dor, perda, vitimização, ressentimento… e aquilo que precisamos aprender com a História! (um vívido elogio fassbinderiano)

Apesar de ter vivido apenas 37 anos de idade, o diretor alemão Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) realizou quase quarenta longas-metragens cinematográficos, além de inúmeras montagens teatrais e vários outros relevantes projetos artísticos. Um de seus filmes em particular – inicialmente lançado como minissérie televisiva – merece ser (re)visto hoje em cotejo com a horda de extrema-direita que vem tomando o poder, por vias alegadamente democráticas, em vários países. Tracemos aqui uma análise superficial do mesmo.

Totalizando quinze horas e trinta um minutos de duração, “Berlin Alexanderplatz” (1980) é uma versão mui pessoal de um romance homônimo bastante cultuado, publicado em 1929, com o intuito explícito de reagir à gestação nacional-socialista então em curso numa Alemanha econômica e moralmente falida. O protagonista de romance e filme chama-se Franz Biberkopf, um ex-funcionário da empresa de transportes que passou quatro anos na prisão por ter assassinado, numa briga, a namorada que se prostituía em seu favor. Apavorado por sair da cadeia em direção a um mundo transformado para pior, Franz quase é atropelado diversas vezes e teme não conseguir a devida reinserção social. Capítulo 1: “o castigo começa”! De fato, é só o começo…

Após envolver-se afetivamente com uma imigrante polonesa que conhece casualmente, num bar, Franz promete ostensiva e repetidamente – a si mesmo, para a nova companheira e para nós, espectadores – que, daquele momento em diante, não praticará mais nenhum ato desonesto. Sabemos de imediato que isso não se cumprirá, o que só se acentua frente à dificuldade em conseguir bons trabalhos e mediante o acúmulo de intensas traições diuturnas, advindas do vício exorbitante que infecta o contexto berlinense do período.

Situado tramaticamente no ano de 1928, a quantidade de encontros e dissabores que dilaceram a alma do protagonista dota o filme de uma atmosfera quase sobrenatural, afinal confirmada em seu epílogo onírico e atravessada por uma narração que mistura citações bíblicas, obituários jornalísticos, relato das atividades de um matadouro e poesias ultra-românticas. Ao diretor, interessam sobremaneira os subterfúgios da sexualidade, principalmente quanto convertidos em vilania, mediante a repressão do “bissexualismo absoluto” que fora defendido pela teoria freudiana e banalizado em corruptela pornográfica a partir da má compreensão das pesquisas de Magnus Hirschfeld (1868-1935). No filme, inclusive, o personagem principal tenta vender algumas destas publicações, mas logo as substitui por outro tipo de pornografia: a disseminação panfletária das idéias que retroalimentariam o vindouro Nazismo. Por não entender o que comercializa involuntariamente, Franz é agredido de militantes socialistas; por não entender o que estava em combate, Franz pratica ou referenda o Mal.

Muita coisa acontece ao longo da projeção – o que foi narrado até então sequer chega ao segundo dos quatorze episódios! – e, se este filme árduo está sendo recomendado agora, é porque, mais uma vez, ele funciona primorosamente como dolorosa profecia: pessoas miseráveis como Franz Biberkopf, incapazes de assimilar a origem social de seus sofrimentos, convertem-se em hospedeiros estrebuchadoramente ativos de ideologias absolutamente nocivas em sua mentirosa faceta “anti-ideológica”. Neste sentido, a leitura dos títulos dos episódios do filme é suficiente para compreender o quanto esta obra-prima fassbinderiana diz sobre os terrores de nossa época hodierna: no terceiro capítulo, o alter-ego roteirístico afirma que “uma martelada na cabeça pode ferir a alma”. Mais à frente, no sétimo episódio, verificamos que “a solidão cria rachaduras de loucura até nas paredes”. E, perto do desfecho, um dos títulos capitulares é explicado através de um letreiro na tela: “num frango, quando se retira o exterior, resta o interior; quando retira-se o interior, resta a alma”. Sobrará uma alma em Franz Biberkopf após tanto sofrimento?!

Quando ainda estava preparando as filmagens da minissérie, o diretor confessou, numa entrevista, os motivos para ser tão intimamente afeiçoado àquele romance e deixa-nos entrever o porquê de transladar um retrato específico de época (a Alemanha dos anos 1920) numa investigação sobre a persistência da vergonha e da culpa genocida (e também suicida) na sociedade atual. Era válido para 1980 e, infelizmente, segue ainda bastante aplicável em 2019: (auto-)repressão sexual, preconceito racial, xenofobia, criminalização cotidiana e incapacidade discursiva de aprender com os erros da História são apenas alguns dos elementos que tornam a jornada devastadora de “Berlin Alexanderplatz” magistralmente necessária. E inebriante. E organicamente transformadora. Pois os gênios, quando morrem (principalmente, de maneira tão precoce) não são esquecidos. Tornam-se imortais, rejuvenescidos a cada novo contato com um público pensante. Não duvidemos: a sagacidade inventiva de Rainer Werner Fassbinder segue atuante. Inclusive para confirmar uma obviedade comumente obnubilada: o melodrama é um dos subgêneros cinematográficos mais políticos que existem!

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