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Notas sobre um filme não desaparecido (ou a invisibilidade que se instaura em meio à coadjuvação ativa)

Notas sobre um filme não desaparecido (ou a invisibilidade que se instaura em meio à coadjuvação ativa)

No conceituado livro “O Negro Brasileiro e o Cinema”, lançado quando se comemorava o centenário da abolição da escravatura no País, em 1988, o autor João Carlos Rodrigues destaca o filme “A Filha do Advogado” (1926, Jota Soares) como o mais antigo – dentre os que não foram considerados desaparecidos por falta de conservação adequada – a destacar um personagem negro, ainda que numa posição ambígua, em razão do provincialismo de sua realização. Relata o autor – no terceiro capítulo do referido livro, “O negro na ‘belle époque’ do cinema brasileiro” – sobre o empregado Gerôncio, interpretado por Ferreira Castro: “coadjuvante e não apenas figurante, este Gerôncio é talvez o primeiro personagem negro de nossa cinematografia, trazendo já alguns traços dos arquétipos futuros: corrupção, superstição, covardia”…

Antes de mencionar este filme, o autor destacou um curta-metragem produzido em 1912, intitulado “A Vida de João Cândido”, sobre a líder da Revolta da Chibata, ocorrida dois anos antes. Ocorre que, segundo a relevante pesquisa histórica de João Carlos Rodrigues, o filme “foi proibido pelo chefe de polícia, tendo a cópia confiscada. Trata-se possivelmente do primeiro caso de censura política no cinema nacional”. O filme não apenas encontra-se desaparecido como sequer se obtém dados precisos acerca de sua realização. Motivo da interdição: exaltar positivamente o comportamento de alguém que protestara contra o tratamento rigoroso concedido aos negros na Marinha de Guerra. Mais de cem anos depois, o que “A Filha do Advogado” nos comunica?

Na introdução da trama, baseada num romance homônimo do poeta Costa Monteiro, um conceituado advogado comunica a um correligionário que, nas extravagâncias de sua juventude, tivera uma filha fora do casamento. Pede a ele que vá ao encontro dela e, por ocasião de uma viagem ao exterior, mantenha-a amparada financeiramente, em sua ausência. Entretanto, o responsável por este zelo apaixona-se inevitavelmente pela moça, de fato muito bonita. Ao consentir que ela mude-se para a capital pernambucana, involuntariamente ele fez com que ela atraia a atenção de um estroina, que calha de ser justamente o filho legítimo do advogado. Durante uma tentativa de estupro deste, ela defende-se utilizando um revólver concedido por seu pai, que se demonstrara preocupado com a defesa de sua honra. O desenrolar de seu julgamento é, portanto, o clímax do roteiro, sobre o qual não se falará aqui, a fim de não estragar o prazer espectatorial de quem ainda não viu o filme.

Percebemos nesta sinopse – escrita mediante as expressões contidas nos intertítulos originais deste valioso filme mudo brasileiro – a manutenção discursiva de valores familiares e classistas ainda em voga nos dias de hoje, e é por conta disso que o pesquisador tacha o filme de “provinciano”. A despeito de sua moralidade ambivalente, ele é um dos mais aprazíveis representantes do chamado “Ciclo de Recife”, deveras significativo na história do cinema brasileiro. Seu diretor o realizou com apenas vinte anos de idade e aparece no enredo como o perdulário que quase comete uma inconsciente violação incestuosa. Os méritos de Jota Soares, afinal, não são poucos, mas, em suas entrelinhas, o filme hipertrofia as contradições inequívocas da arte elitizada: na trama, por exemplo, a mais embrutecida acusadora da rapariga que tentou defender-se de maneira armamentista é justamente a noiva traída do potencial estuprador, não por acaso bacharela em Direito. É possível um final feliz para este melodrama? Se a resposta for positiva, para quem?

Vale a pena enfatizar que, para o desfecho da trama, é essencial a contribuição depoimental do negro Gerôncio, que traz à tona, no julgamento, revelações surpreendentes. Ou talvez extremamente previsíveis, quando levamos em consideração os preconceitos internalizados que caracterizavam a sociedade brasileira naquele momento e que, infelizmente, ainda são manifestos hoje em dia. É absolutamente necessário que seja defendida a acessibilidade deste longa-metragem, um dos mais antigos a sobreviverem aos maus tratos institucionais concedidos historicamente ao cinema nacional, mas é ainda mais urgente problematizá-lo, no modo como concede visibilidade a um personagem que, noutra conjuntura, seria descartado ou completamente vilanizado. O título familiar e profissionalizante deixa à mostra valores que fundamentaram a expressão imprópria “homens de bem”. E todos sabemos o que isso desencadeia, em termos políticos e sobretudo eleitorais: a substituição de um adjetivo pelo outro e a pretensa homogeneização de uma postulação honorífica que é, por si mesma, bastante excludente. O discurso paterno proferido ao final do filme que o diga…

PS: para além de qualquer insatisfação frente ao conteúdo de alguns filmes, que testemunham artisticamente o que era disseminado como apanágio moral da época em que foram realizados, é mister que lutemos para que sejam resgatados muitos outros clássicos do cinema brasileiro, ainda dados como desparecidos ou ignorados em depósitos insalubres para a conservação de películas. O próprio “A Filha do Advogado” só passou a ser visto e discutido pelas novas gerações depois que foi restaurado, no início da década de 1980, pelos esforços da Cinemateca Brasileira. Que outros reapareçam!

Wesley Pereira de Castro

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