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“Não se pode viver a noite inteira e, depois, o dia inteiro”… Ou de quando o livro é melhor que o filme: e daí?

“Não se pode viver a noite inteira e, depois, o dia inteiro”… Ou de quando o livro é melhor que o filme: e daí?

É muito comum que, num primeiro impulso, ao término da sessão, o fã de algum livro adaptado para o cinema irrite-se ao perceber que “o livro é bem melhor”. Em verdade, esta é uma opinião que não respeita as especificidades linguísticas de cada uma das obras: ainda que seja detectado o aproveitamento de elementos congêneres — a mesmíssima trama, por exemplo —, o livro é o livro e o filme é o filme. Cada um deles funciona por si mesmo, sendo “perdoável” quando a adaptação é malsucedida. Sobre o assunto, o crítico André Bazin [1918–1958], num texto intitulado “Por um Cinema Impuro — Defesa da Adaptação” ousava dizer que “é absurdo indignar-se com as degradações sofridas pelas obras-primas literárias na tela”, visto que as adaptações “não podem causar danos ao original, junto à minoria que o conhece e aprecia”. Justifica ele que, ao ser adaptada uma determinada obra, os espectadores “terão vontade de conhecer o modelo, o que é um ganho para a literatura”. E arrebata: “este raciocínio está confirmado por todas as estatísticas da edição, que acusa um aumento surpreendente da venda das obras literárias depois da adaptação pelo cinema”.

Há uma intenção bastante específica, neste artigo, para aproveitar as supracitadas citações bazinianas: uma das adaptações que ele analisa no referido texto é a conversão do livro “O Diabo no Corpo”, publicado em 1923 por Raymond Radiguet [1903–1923], no longa-metragem “Adúltera” (1947, de Claude Autant-Lara), bastante atacado pelos “jovens turcos”, críticos e cinéfilos tão obcecados quanto exigentes, vinculados à revista Cahiers du Cinéma. Num artigo sobremaneira polêmico do então crítico François Truffaut [1932–1984], “Uma Certa Tendência do Cinema Francês”, o roteiro do filme em pauta é amplamente rechaçado nas contradições da “tradição de qualidade” a que pertence: por mais que o diretor seja reconhecido por seu não-conformismo, os roteiristas Jean Aurenche e Pierre Bost são tachados de excessivamente aburguesados. O filme está muito aquém do livro, portanto.

Mas vamos por partes: quem ainda não teve o sumo prazer de ler a novela romântica “O Diabo no Corpo”, o momento é agora. Publicado em 1923, justamente o ano em que faleceria o seu autor, antes mesmo de completar vinte anos de idade — em decorrência de um adoecimento por febre tifoide —, este livro relata o interlúdio amoroso entre o narrador, com dezesseis anos de idade, e uma mulher casada, Marthe, durante a I Guerra Mundial. Como, ainda que precoce, o rapaz é muito jovem, seus comportamentos são impetuosos e possessivos, de modo que ele trata a sua amante de maneira injusta, em mais de uma situação. Chega mesmo a traí-la sexualmente, em duas oportunidades, enquanto se irrita ao imaginar que ela transe com o próprio marido. Mas tudo isso é justificado, na narração, pela autenticidade do eu-lírico. Como trata-se de um livro com pouco mais de uma centena de páginas, os capítulos e as frases são curtas, mas geralmente impactantes. Um exemplo: “O amor deve oferecer grandes vantagens, para que todos depositem a liberdade em suas mãos. (…) Eu ignorava que, servidão por servidão, mais vale ser vassalo do coração que ser escravo dos sentidos”.

Diante da extrema qualidade desta obra-prima singular de um autor mui promissor — que se tornou um protegido e objeto de desejo do poeta Jean Cocteau [1889–1963] —, é compreensível que os seus leitores nutram empolgação e apreensão em face da adaptação supramencionada, que causou muita polêmica quando foi lançada, não apenas por seu entrecho de cariz erótico, mas sobretudo pelos adendos antimilitaristas do roteiro. Nota-se, desde o início, uma modificação muito contundente na trama, em relação ao livro: no filme, o protagonista, agora nomeado François (Gérard Philipe — premiado no Festival de Bruxelas, por este papel), conhece Marthe (Micheline Presle) quando esta começa a trabalhar como enfermeira num hospital para feridos de guerra, improvisado ao lado do Liceu onde o rapaz estuda. A paixão é imediata, e Marthe sujeita-se de maneira intensificada aos caprichos de François. Detalhe: ainda que a personagem feminina seja apresentada como mais velha — e, portanto, quase uma hebefílica — os dois atores tinham exatamente a mesma idade quando a produção foi realizada. Além disso, o título brasileiro do filme apressa-se em condená-la como adúltera, de modo que, tal como ocorre no livro, o desfecho do romance proibido precisa ser trágico. Mas a versão cinematográfica é exagerada em seus recursos melodramáticos: vide a maneira como a mãe de Marthe (Denise Grey) atira ao chão, com desdém, as rosas compradas por François, enquanto ele se destroça emocionalmente ao perceber que Jacques (Jean Lara), o marido de Marthe, fecha a janela, a fim de deflorá-la nupcialmente…

Em razão de a narrativa, no filme, ser apresentada de maneira objetiva, encontramos François zanzando pelas ruas, no dia em que foi declarado o fim da I Guerra Mundial, após a assinatura do armistício, em 11 de novembro de 1918. Enquanto as pessoas cantam e dançam nas ruas, ele se entristece, ao perceber um cortejo fúnebre, em meio às comemorações. É a deixa para que surjam ‘flashbacks’ de seu idílio afetivo, não sendo disfarçadas as suas crises de ciúmes e a agressividade típica de sua faixa etária. Personagens coadjuvantes são mostrados de maneira caricata e a lascividade literária é substituída por um refinamento que beira a autocensura convencional: a palavra “gravidez”, por exemplo, sequer é pronunciada, mas sussurrada de maneira inaudível, numa sequência em que precisa ser anunciada. Trata-se de uma adaptação pouco inspirada, mas que, ainda assim, fez muito sucesso de bilheteria. Acontecia antes, e continuará acontecendo, enquanto o cinema for encarado como um provedor de mercadorias rentáveis, que são prontamente substituíveis pelos próximos lançamentos, na opinião de seus ambiciosos produtores. A boa notícia: para quem amou o livro original, convém rever a extraordinária versão da mesma história, a cargo do genial cineasta italiano Marco Bellocchio, no iconoclástico “Diabo no Corpo” (1986), que chega a possuir uma polêmica cena de felação. “Virá o tempo das ressurgências, isto é, de um cinema de novo independente do romance e do teatro”, vaticina André Bazin, em seu clássico artigo. Façamos coro, em relação a ele, mas sem desprezar os interessantes atos falhos produzidos durante o percurso!

Wesley Pereira de Castro.

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