Entre os dias 13 e 19 de março de 2025, ocorreu a décima terceira edição da Mostra Tiradentes SP. Trata-se de uma edição resumida do evento que comumente abre o calendário audiovisual brasileiro, a Mostra de Cinema de Tiradentes, em Minas Gerais. O escopo fílmico dessa mostra é caracterizado pelo experimentalismo, por um tipo de produção que encontra dificuldades para ser exibida comercialmente. Como exemplos, destacamos o excelente porém hermético “Margeado” (2025, de Diego Zon), o criativo “Kickflip” (2025, de Lucca Filippin — comentado aqui), o audacioso “O Mundo dos Mortos” (2025, de Pedro Tavares) e o divisivo “A Primavera” (2025, de Daniel Aragão & Sérgio Bivar). São filmes que evitam as convenções narrativas, demonstrando-se assaz estimulantes para quem se interessa pelos novos rumos do novíssimo cinema brasileiro.
Reaproveitando a pergunta-chave da mostra mineira, “que cinema é esse?”, a versão paulista do evento exibiu quatorze longas-metragens e treze produções de curta duração (algumas delas foram comentadas aqui), incluindo o vencedor da seção Olhos Livres, o extraordinário “Deuses da Peste” (2025, de Gabriela Luíza & Tiago Mota Machado), que abriu o evento. Na derradeira sessão, o longa-metragem sergipano “Um Minuto é uma Eternidade para Quem Está Sofrendo” (2025, de Fábio Rogério & Wesley Pereira de Castro), que venceu a seção Aurora, destinada a diretores estreantes. Como um dos realizadores é o autor das linhas ora escritas, reperguntamos a questão acima: é lícito que se escreva elogiosamente acerca desta obra?
Sem ter a intenção de responder ao que foi perguntado, mas de estimular o debate sobre a capacidade de um diretor tornar-se espectador apaixonado daquilo que efetivou, trazemos à tona o célebre exemplo do cineasta Neville D’Almeida, que, ao ser questionado sobre qual seria o seu filme favorito de todos os tempos, não titubeia: “Rio Babilônia” (1982, de Neville D’Almeida). E ele explica os porquês de amar tanto o próprio filme, no sentido de que, quando o revê, assiste a exatamente aquilo que desejou filmar. Faz sentido a apreciação, portanto? Para muitas pessoas, isso seria um indicativo de extrema vaidade. Qual seria a maneira menos problemática de demonstrar afeto por algo correspondente àquilo que foi intentado, em âmbito artístico/discursivo? Mais uma pergunta para debate.
Sobre o filme sergipano: em pouco mais de sessenta minutos de duração, um dos diretores do filme exibe a si mesmo no confinamento pandêmico, entremeando instantes de extrema depressão com interações afetivas direcionadas à sua mãe e aos seus animais domésticos, além da leitura de vários trechos de livros e de menções a inúmeros filmes. Wesley, o personagem real, é um cinéfilo compulsivo, de modo que transfere para o seu dia a dia as situações que consome cinematograficamente: por vezes, ele reproduz tendências de algumas obras; noutros casos, refuta. Em ambos os contextos, estimula o espectador a refletir sobre o impacto da arte em nosso cotidiano. Fica evidente que o que ajudou este homem a continuar vivo, não cedendo às tendências recorrentes de suicídio, foi a sua paixão pelos filmes, além de uma adesão à musicalidade e, claro, da aceitação do gozo (auto)erótico como fonte acessível de prazer. Ele aparece despido em várias ocasiões, o que provocou algum incômodo entre espectadores: havia mesmo a necessidade de exibir de maneira ostensiva o seu pênis?
Não caberá, aqui, uma defesa do que deveria ou não constar do filme: na opinião deste articulista, a obra co-dirigida justifica internamente as suas opções estéticas e recorrências fetichistas. Realizado através de um telefone celular deveras precário, as imagens e sons não são tecnicamente esmeradas. Pelo contrário, demonstram-se borradas, dissolvidas, desgastadas, mas também metonímicas em relação ao que é tematizado, no que tange à capacidade do protagonista em enfrentar as suas dificuldades aquisitivas e psicológicas. No texto de apresentação da seção Aurora, redigido pelos curadores da Mostra Tiradentes, o filme é definido da seguinte maneira: o longa-metragem “apresenta a angústia de um personagem desajustado que se debate entre a abstração e a materialidade do seu mundo. A fragmentação da montagem intensifica uma performance turbulenta em meio a livros, filmes e aplicativos de relacionamento. A instabilidade das imagens acompanha os dias que se repetem e nunca são os mesmos”. É o suficiente para que a produção consiga galgar algum espaço exibitório e conquiste fatias interessadas de um público que se identifica com as inquietações apresentadas? De nossa parte, não evitando um insuspeito oportunismo divulgador, recomendamos o filme. Como é dito mais de uma vez, nos monólogos wesleyanos, aprendemos com as experiências dolorosas de vida, depois que sobrevivemos a elas. Como tal, o ciclo é instituído: se bebemos água para continuarmos vivos, precisamos também urinar. A frase pareceu estranha? Que tal confirmar o que ela representa no filme em pauta, hein? O interesse espectatorial é legítimo!
Wesley Pereira de Castro.
Fonte da imagem: arquivo pessoal do autor