Quem viveu/cresceu na década de 1990, lembra que, por conta do enorme sucesso de “Instinto Selvagem” (1992, de Paul Verhoeven — em Portugal, “Instinto Fatal”), o subgênero ‘thriller’ erótico passou a ser produzido aos borbotões: foram lançados diversos filmes, na primeira metade dessa década, em que a fórmula roteirística era a de uma bela mulher, acusada de um ou mais crimes, que seduz o homem da lei responsável pela investigação. Tudo na trama, entretanto, era pretexto para inserir cenas de sexo, em que o corpo desta mulher era sobremaneira exposto, a fim de instigar o apetite erotógeno das platéias masculinas. Isso fez com que militantes feministas resgatassem a expressão ‘male gaze’, elaborada discursivamente pela teórica britânica Laura Mulvey, relacionada ao direcionamento imagético da maioria dos filmes ao olhar desejoso dos homens heterossexuais. A referida fórmula esgotou em meados dessa mesma década, sendo “Jade” (1995, de William Friedkin) um de seus derradeiros expoentes…
Não se quer dizer que esse tipo de filme não continue sendo produzido e muito menos que, hoje em dia, a objetificação extrema do corpo feminino não permaneça largamente explorada. Porém, a necessidade de protestar contra estas situações engendrou uma corruptela bastante questionável, que é o moralismo progressivo das novas gerações, no que tange à inserção de situações sexuais em filmes contemporâneos. Nas mídias sociais, são abundantes — não enquanto piada, infelizmente — a requisição de um “botão para pular cenas de sexo” nos serviços de ‘streaming’. A fim de se evitar o prolongamento do machismo, via adoção assimétrica da nudez entre os gêneros, “joga-se o bebê fora, junto com a água suja”, para utilizar um conveniente ditado popular.
Há muitas nuanças envolvidas nesta questão, mas não se deve confundir a representação problemática das mulheres, convertidas em meros “símbolos sexuais” nestes filmes, com a rejeição peremptória dos mesmos. Tomamos como exemplo analítico um longa-metragem que foi execrado pela crítica, depois de ser amplamente censurado e mutilado em sessões estadunidenses: “Corpo em Evidência” (1992, de Uli Edel – em Portugal, “Corpo de Delito”). Dirigido por um cineasta alemão acostumado às polêmicas [ele foi o responsável pela adaptação cinematográfica de “Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída” (1981) e pelo violentíssimo “Noites Violentas no Brooklyn” (1989)], este filme causou muita celeuma, em seu lançamento, pois foi associado ao livro fotográfico “Sex” e ao álbum musical “Erotica”, ambos de 1992, vinculados à protagonista Madonna.
Roteirizado por Brad Mirman, um profissional que ainda estava em começo de carreira, “Corpo em Evidência” conta a história de um milionário afeito às práticas sadomasoquistas, que é encontrado morto, algemado à cama, diante de uma TV ligada, onde são exibidas gravações pornográficas, em que ele aparece ao lado de sua namorada Rebecca Carlson, vivida por Madonna. Ela é automaticamente convertida em suspeita de assassinato, e é presa depois que se sabe, após a leitura do testamento, que ela foi nomeada como herdeira de oito milhões de dólares. Ela contrata o advogado Frank Dulaney (Willem Defoe) para defendê-la, mas ele não parece convencido de sua inocência. Para piorar, ele envolve-se sexualmente com a cliente, culminando na famosa seqüência em que Rebecca despeja vela derretida em seu corpo. Ocorre que Frank é casado, e quando sua esposa Sharon (vivida por Julianne Moore) percebe as manchas em sua pele, ele a tacha de paranóica. A própria Rebecca já havia declamado um laudo importante, em seu julgamento: “homens mentem”!
Não obstante as várias cenas de sexo deste filme, a maior parte de seus quase cem minutos de duração ocorre num tribunal, em que Frank se digladia com o promotor Robert Garrett (interpretado por Joe Mantegna), que tenta incriminá-la. Como não esconde a sua preferência por práticas sexuais heterodoxas, Rebecca percebe a hostilidade de um júri conservador e aproveita-se disso para manipular a audiência, utilizando a estratégia das revelações chocantes como proteção para as suas verdadeiras intenções. Seria ela realmente culpada? É necessário (re)ver o filme para saber! Salientamos que ele está sendo aqui resenhado porque surge como metonímia de um tipo de produção hollywoodiana que expõe as mulheres como se elas estivessem na prateleira de um açougue. A atriz Julianne Moore manifestou muita insatisfação, a posteriori, acerca de como sua nudez é explorada neste filme, enquanto Willem Defoe reclamou que, após diversos cortes, seu corpo não foi igualmente exibido. Qualquer situação, no enredo, serve como deixa para que Madonna seja mostrada nua, de modo que a sua interpretação foi bastante atacada, à época. O filme nem é tão ruim pelo que aborda tramaticamente — pelo contrário, é até eficiente —, mas ele nos incomoda pelo que reitera, à guisa de proxenetismo fílmico. Isso é motivo para que defendamos a extirpação definitiva das seqüências eróticas? É uma reflexão delicada, visto que a teoria do ‘male gaze’ é procedente e as oportunidades concedidas às mulheres são assaz injustas, de modo que elas costumam receber menos pelos mesmos papéis oferecidos aos homens. Estamos diante de uma nódoa estrutural, que requer a reavaliação perene de como se consome o erotismo em filmes. Defender a sua abolição definitiva, entretanto, é algo que só reforça o problema, em vez de resolvê-lo. Alguma sugestão adicional?
Wesley Pereira de Castro.
6 respostas
Excelente texto e narrativa, Wesley! No que concordo, com relação a hipocrisia.
Parabéns!
Espero que tenhamos caminhos mais próximos e alternativas, para desconstruir a hipocrisia. Também vou refletir sobre alguns pontos que me despertou ao ler seu texto.
Que venham os encontros e debates, portanto. Permeados por concordâncias e discordâncias, pois ambas prolongam a experiência artística. Por conta delas, revisões são importantes. Muitíssimo obrigado pelo comentário entusiasmado: a reflexão é mútua!
Eu não revisitei esse filme especificamente por causa da má interpretação da Madonna (e olha que sou fãzaço dela), e não pelo enredo, que considero bom. Mas, seu texto me fez ter vontade de fazê-lo. Tentarei. Daquela fase, gosto bastante de “Instinto Selvagem” sim mas…meu preferido é “Invasão de Privacidade”.
Em tempo, concordo com suas indagações.
Olha só que curioso: também sou um apreciador de “Invasão de Privacidade”, outro filme que foi destroçado pela crítica (surgiram até dois finais, por conta disso). Consegui o DVD dele recentemente, e o reverei em breve. Quanto a “Corpo em Evidência”, de fato, a interpretação da Madonna está aquém e seu talento, mas acho que por causa de problemas relacionados à construção de sua personagem. Mas a dinâmica dos diálogos, no tribunal, é ótima. Muito obrigado pelo comentário! (WPC>)
Gandalf dizia: “Muitos que vivem merecem a morte. E alguns que morrem merecem viver. Você pode dar-lhes a vida? Então não seja tão ávido para julgar e condenar alguém a morte. Pois mesmo os muitos sábios não conseguem ver os dois lados.”
Pode a nudez estar à vontade diante de uma câmera?
Questão difícil!!!
Há nudezes e nudezes… Bem como câmeras e câmeras. Mas, sim, é uma questão que traz consigo alguma dificuldade inequívoca!