No dia 11 de dezembro de 2020, quando faltava pouco mais de uma semana para o seu aniversário de sessenta anos, o cineasta sul-coreano Kim Ki-Duk [1960-2020] faleceu em decorrência de complicações da COVID-19. Três anos antes, ele foi acusado de assédio sexual por algumas mulheres. Uma delas, que pediu para permanecer anônima, afirmou ter sido estuprada por ele, durante a etapa convocatória para um de seus filmes. O ator Cho Jae-Hyun, recorrente em suas obras, também foi acusado, de modo que, segundo as denunciantes, eles agiam juntos em seus atos de intimidação contra as mulheres. Tematicamente, isso aparece em seus filmes. A notícia de sua morte passa a ser menos trágica por conta disso?
A despeito de ter sido premiado nos principais festivais de cinema do mundo, Kim Ki-Duk é alvo comum de controvérsias. Seja pela violência caracteristicamente estilizada de seus enredos, seja pela situação drástica que ocorreu durante as filmagens de “Sonho” (2008), no qual uma atriz quase morre durante uma cena de enforcamento. Por conta disso, o diretor refugiou-se numa cabana isolada, por cerca de três anos. O resultado deste confinamento foi o filme ensaístico “Arirang” (2011), no qual ele tenta expiar algumas de suas culpas? Consegue? Pelo sim, pelo não, recebeu a láurea máxima na Mostra Un Certain Regard do Festival Internacional de Cinema de Cannes.
Recentemente, o longa-metragem “Humano, Espaço, Tempo e Humano” (2018) foi convidado pera ser exibido no Festival de Cinema de Berlim, o que desencadeou a revolta de vários artistas, visto que, não obstante as situações de estupro não terem sido comprovadas, Kim Ki-Duk foi obrigado a pagar uma multa financeira, em razão de ter agredido uma atriz. Segundo ele, dar tapas seria parte do treinamento para a composição de uma personagem, mas isso não foi bem compreendido. Para muitas pessoas, a participação do cineasta em eventos públicos seria uma demonstração de anuência em relação à sua postura como agressor e abusador. Analisando-se os seus filmes, infelizmente, esta impressão procede!
Obcecado tematicamente por uma espécie de redenção romântica/sexual que advém de uma via-crúcis sadomasoquista, Kim Ki-Duk iniciou tardiamente as suas atividades cinematográficas, sem ter estudado especificamente para isso, aos 36 anos de idade, com o longa-metragem “Crocodilo” (1996). Nos anos seguintes, converteu-se num cineasta deveras prolífico, às vezes realizando mais de um filme por ano, entre eles, os mui elogiáveis “A Ilha” (2000), “Endereço Desconhecido” (2001) e “Casa Vazia” (2004). Tornou-se igualmente amado e odiado pelos críticos. Até acontecer o acidente que desencadeou a sua renascença pessoal e artística, via “Arirang”. É sobre este filme que falaremos a partir de agora…
O título do documentário – que, em verdade, é um drama, insiste o diretor, em mais de uma oportunidade – advém de uma famosa canção sul-coreana, sobre solidão e abandono. No refrão, os seguintes versos: “Arirang, Arirang, Arariyo/ Atravessando a Passagem Arirang/ Aquele que me abandonou/ Não deve caminhar sequer quatro quilômetros antes que seus pés doam”. O próprio Kim Ki-Duk cantarola esta canção em dois momentos distintos: no primeiro, de maneira solene e plangente, lacrimejando bastante durante a execução; no segundo, de maneira surtada e gritante, demonstrando extremo descontrole emocional, próximo do desfecho do filme. E cada execução em particular é deveras forte: a canção é linda. E importantíssima em seu país natal, tendo sido regravada até mesmo pelo grupo de K-Pop BTS!
Numa das seqüências mais dramáticas deste documentário, Kim Ki-Duk assiste ao seu filme mais conhecido, o premiado “Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera” (2003), onde a canção supracitada é executada, numa versão intensa. Mais uma vez, o cineasta chora. Ao longo do filme, ele entrevista a si mesmo, simulando um diálogo com a própria sombra. Com isso, ele visa não apenas ao esclarecimento das conseqüências morais do acidente que ocorreu durante as filmagens de “Sonho”, mas à declaração de que se sentira traído quando alguns membros de sua equipe o abandonaram para seguir carreiras pessoais. Depois, ele compreende que era direito deles. E o desalento advém do conflito entre a primeira e segunda insinuação. Em mais de um aspecto, “Arirang” é uma declaração de culpa. E um pedido ostensivo (e ensaiado) de perdão também!
Como este documentário foi realizando antes das situações que desencadearam as acusações, enxergar nele indícios que confirmem as falhas comportamentais posteriores seria um exercício anacrônico e um tanto injusto de condenação espectatorial. Até porque o cineasta assume muitas das chagas que direcionavam-lhe até aquele momento. Confessa-se como alguém sem amigos e revela que alguns elementos contextuais de seus filmes são inspirados por dilemas autobiográficos. A perversão, mais uma vez, insurge-se como sintoma de angústia e desespero. Quando Kim Ki-Duk chora e lamenta-se tanto, tendemos a chorar juntos. Quando ele constrói um revólver, numa oficina improvisada, entretanto…
Em mais de um enquadramento, os pés do diretor são mostrados, e percebemos que os seus calcanhares estão feridos e calejados, o que o associa personalisticamente, mais uma vez, ao protagonista do filme a que ele assiste. É evidente que Kim Ki-Duk atua bastante quando justifica-se intimamente, descreve o roteiro que pretendia filmar com Willem Dafoe e compara os sentimentos humanos ao funcionamento de um carro e/ou de um telefone celular. Como é típico das pessoas depressivas, o diretor-personagem enxerga o mundo como um lugar amargo. Tece reflexões potentes sobre o porquê de precisarmos matar animais e vegetais para alimentarmo-nos. Reitera que os vilões são preferidos entre os atores que querem demonstrar as suas habilidades performáticas. Após realizar “Arirang”, o cineasta receberia o Leão de Ouro no Festival de Veneza, graças ao filme “Pietà” (2012), e desencadearia polêmicas a partir de “Moebius” (2013), que foi o filme em cujas etapas produtivas ocorreram os assédios. Hoje, ele está morto. O que o faz ser lembrado?
Wesley Pereira de Castro.