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“Eu não entendo a geração de vocês, é tudo TikTok, Instagram…”: uma metonímia para o cinema norte-americano, em 2024

“Eu não entendo a geração de vocês, é tudo TikTok, Instagram…”: uma metonímia para o cinema norte-americano, em 2024

Imagem de destaque: http://newyorker.com/culture/the-front-row/anora-is-more-for-show-than-for-substance

Apesar de ter realizado alguns longas-metragens anteriores a “Tangerina” (2015), foi este filme que projetou internacionalmente o nome do cineasta Sean Baker, independente em essência e temáticas. Afeiçoado aos personagens marginais e/ou marginalizados, ele destacou-se pela maneira inteligente e inusitada com que registrou os embates e reconciliações entre transexuais, numa obra audaciosamente filmada através de um telefone celular (de última geração, até aquele momento, obviamente). Seus trabalhos posteriores [“Projeto Flórida” (2017) e “Red Rocket” (2021)] têm como elemento comum a capacidade imaginativa de protagonistas que enfrentam a miserabilidade em meio aos centros urbanos. E esses três filmes também surpreendem pela naturalidade com que expõem algumas questões sexuais…

Graças ao recente “Anora” (2024), Sean Baker recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes e, mais uma vez, aborda as questões que lhe são caras: os anseios de uma dançarina de ‘strip-tease’, que acredita ter encontrado o homem de seus sonhos, após casar-se, de supetão, numa noitada em Las Vegas, com um jovem russo. Ela cria que ele correspondesse ao seu amor, por conta da abundância de transas e dos convites que ela recebe, para frequentar lugares requintados, até que a família do rapaz exige a anulação do casamento. Mas vamos por partes, visto que o diretor é muito hábil na composição de personagens e situações, mas não necessariamente na elaboração sustentacular dos mesmos: algo sempre degringola, em mais de um sentido, nalgum momento.

Interpretada, com muita naturalidade, por Mikey Madison, Ani tem uma rotina cansativa como dançarina erótica, conforme percebemos na sequência inicial, em que ela se oferece a diversos clientes, na boate onde trabalha. Por ser descendente de uma família de imigrantes russos — seu nome de batismo é Anora Mikheeva —, ela é escolhida para atender Ivan Zakharov (Mark Eydelshteyn, histriônico e pouco convincente), recém-chegado aos EUA e continuamente embriagado. Mais novo e bem mais imaturo que ela, Ivan convida Ani para passar uma semana consigo, pagando todas as despesas e, ao aceitar, ela percebe que criou uma conexão emocional (ilusória) com ele, a ponto de aceitar um pedido de casamento, entre uma e outra rodada de bebidas. Porém, Ivan raramente larga os jogos eletrônicos e não é muito exitoso em prolongar as suas ejaculações: em menos de quinze minutos, o contato carnal está acabado!

A despeito das diferenças comportamentais, Ani não se sente desdenhada pelo marido, mas, durante uma foda, eles são interrompidos por capangas do pai de Ivan, que a amarram, para forçar a anulação do matrimônio. Ivan foge, deixando Ani sozinha com os homens brutalizados, a quem ela consegue espancar, em seu afã por sobrevivência. E isso a obrigará a rever as dimensões de sua fantasia relacional, posto que as displicências etílicas de Ivan tornar-se-ão cada vez mais problemáticas: ele chega mesmo a aceitar o convite sexual de uma das antigas colegas de trabalho de Ani, invejosa em relação àquilo que ela conseguiu. Num amontoado de situações tão violentas quanto cartunescas — tal qual já acontecera nos filmes anteriores, aliás —, Ani desenvolve uma improvável proximidade quanto a um dos capangas, o taciturno Igor (Yura Borisov), que, em determinado instante, com um sorriso largo no rosto, diz não ser um estuprador. É o aniversário dele, mas o clima não é festivo: pelo contrário, o filme muda radicalmente de tom em seu terço final, e cresce bastante ao notarmos o traço mais característico de seu realizador, que é a simpatia irrestrita por seus protagonistas, para além de seus equívocos eventuais.

Se, na maior parte de suas duas horas e dezenove minutos de duração, “Anora” possui um ritmo frenético e consciencioso do término anunciado de seu transe efusivo, no desfecho, ele revela-se uma obra incrivelmente adulta, tal qual o faz-tudo armênio Toros (Karren Karagulian) requer para si mesmo, à guisa de alcunha, ao expor para Ani as incongruências das promessas feitas por Ivan, na ocasião do supracitado casamento. Mesmo que o filme não seja a obra-prima que muitos anunciaram, “Anora” conquista-nos pelo respeito direcionado a personagens que noutras obras hollywoodianas, seriam julgadas por seus atos afobados. Repleto de mal-entendidos que desembocam na destruição de ambientes e objetos, o enredo transita entre a comédia ligeira e o drama reflexivo, ostentando um apanágio das narrativas hodiernas, em que as partes chamam mais atenção que o todo, sem a epicidade de outros tempos: explorada à exaustão num trabalho que literalmente a prostitui, Ani deixa-se encantar pelas ofertas ambiciosas de um cliente que sequer utilizava a completude das horas de coito que contratava – o que não correspondia em lucro, não obstante ela ser bastante remunerada, ao final. Que este filme tenha se convertido num dos favoritos ao Oscar 2025 é algo que diz muito sobre as transições ainda confusas da recepção espectatorial contemporânea. Uma pergunta, para reflexões posteriores: o que esperamos/desejamos no cinema do Século XXI?

Wesley Pereira de Castro.

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