Imagem de destaque: https://fiocondutor.com.pt/amp/look-back-2024/
Passados os rituais durante a “hora da virada”, incluindo-se as cores de roupas íntimas escolhidas mediante superstições, e listadas as devidas resoluções para os trezentos e sessenta e cinco dias vindouros, costuma-se despertar cansado na manhã de primeiro de janeiro. Alguma coisa mudou, de fato? Ou somos nós que precisamos aproveitar a deixa calendarial para livrarmo-nos de pequenos vícios que, em sua cumulação diuturna, não apenas nos prejudicam como também sufocam a quem está ao nosso redor? Eis uma reflexão basilar nesta coluna de cinema, que, por vezes, confunde-se com um manual de auto-ajuda. E isto não é casual…
Em razão da pletora de questões subjetivas que são trazidas à tona em produções contemporâneas, muitas vezes nos servimos dos filmes como incentivos comportamentais, enquanto estímulos para que façamos (ou deixemos de fazer) algo. O interessantíssimo média-metragem japonês “Look Back” (2024, de Kiyotaka Oshiyama) enquadra-se muito bem nesta categoria: trata-se de uma adaptação do mangá homônimo de Tatsuki Fujimoto, e tem muito a dizer sobre o modo como agimos profissionalmente, inclusive em relação àquilo que fazemos por prazer: por que esta obrigação de termos “aquela velha opinião formada sobre tudo”, conforme cantado pelo saudoso Raul Seixas [1945–1989], tantas e tantas vezes? Não basta apenas fazermos a nossa parte, enquanto redirecionamos para outrem aquilo que nos comove?
Durante os cinqüenta e sete minutos de duração deste filme animado, conhecemos a estudante Ayumi Fujino, que desenha no jornal da escola desde as séries do Ensino Fundamental. Em determinado momento, o diretor avisa-lhe que uma aluna reclusa colaborará com ela, o que, inicialmente, não lhe causaria transtorno algum. Ocorre que as tirinhas desenhadas pela novata Kyomoto divertem e encantam os leitores, deixando Fujino sumamente enciumada. Em lembranças, acompanhamos os elogios de diversas pessoas aos talentos de Fujino, e apenas um comentário que lhe diz que os desenhos de Kyomoto são melhores. Adivinham qual ficará repercutindo na mente dela?
Decidida a ser ainda mais competente do que já é, Fujino enfurna-se em casa, compra diversos livros sobre técnicas de desenho e declina dos convites de suas melhores amigas, mas Kyomoto continua a chamar a atenção por suas tirinhas. Até que, um dia, ela desiste de desenhar para aquele jornalzinho. A pedido do diretor, ela é encarregada de entregar o diploma de formatura escolar a Kyomoto e, quando a conhece pessoalmente, entende o porquê de ela não sair de casa (tem fobia crônica de pessoas). Ambas desenvolvem uma amizade que também se torna uma parceria frutífera: elas escrevem juntas alguns mangás, e são premiadas por isso. Até que Kyomoto decide ingressar numa faculdade de Artes, o que deixa Fujino novamente enciumada. E uma tragédia acontece, obrigando-a a se refugiar em narrativas de consolo, tal como o filme parece ser. Sendo assim, o convite à reflexão é direcionado aos espectadores, por extensão: que tal revermos o modo como tratamos algumas pessoas queridas, bem como a nós mesmos? É para isso que serve a tônica de Ano Novo, afinal!
Sensivelmente roteirizado e magistralmente musicado, este média-metragem faz com que “olhemos para trás”, da mesma forma que mencionado em seu título, e aproveitemos as nossas memórias, sobretudo as traumáticas, como motrizes para a transformação cotidiana: em vez de aderirmos à culpa paralisante — o que é inevitável, nalguns momentos —, devemos utilizar a percepção de nossos erros anteriores como advertências para que eles não sejam repetidos em situações semelhantes. Incapaz de mudar o rumo dos acontecimentos, Fujino escreve sobre aquilo que lhe provoca muita dor, de modo que os produtos artísticos derivados têm funções terapêuticas. Muitos relatos autobiográficos possuem esta intenção purgadora, ainda que não exclusivamente. De nossa parte, utilizamos este pretexto para aconselharmos uma mudança de ritmo em nossa produtividade consumidora/crítica: para que esta obsessão por listas? Por que esta aparente obrigação de estarmos sempre atentos às novidades (quando muitas delas são meras imitações do que já foi feito)? De que adianta ficarmos quantificando os filmes que vemos, os livros que lemos, ao invés de efetivamente apreciá-los? Tudo bem que, na maior parte das situações, isso advém de exigências externas, vinculadas ao agendamento midiático. Mas… Será mesmo que não dispomos de outras opções procedimentais, na execução daquilo que nos compete funcionalmente, em obrigações hebdomadárias, como a desta coluna, por exemplo? No filme, há uma situação em que Kyomoto reclama que está entediada de tanto conceber mangás: “passo o dia inteiro desenhando-os e, mesmo assim, estou sempre longe de terminá-los. Prefiro voltar apenas a lê-los!”. Mais uma vez, não é casual que as interrogações estejam tão abundantes neste texto: elas converter-se-ão em ações. Cabe o desejo de “feliz ano novo”, neste derradeiro parágrafo? Pelo sim, pelo não, eis o nosso voto sincero. Que venha a safra 2025 — e, mais que isso, a descoberta de inúmeros títulos passados, ainda não vistos e/ou insuficientemente comentados!
Wesley Pereira de Castro.