Apesar de estar indicado em dez categorias ao Oscar 2020, o filme de guerra “1917” (2019, de Sam Mendes) desagrada por não apresentar justamente aquilo que se espera de uma produção deste gênero: o viés antibelicista. Midiaticamente, é amplamente elogiada a esmerada (e pretensiosa) composição técnica do filme, que serve-se da aparência de um único plano-seqüência para fazer com que o espectador imerja na saga de desventuras experimentadas pelo cabo William Schofield (George MacKay) enquanto cumpre a missão de entregar uma importante carta a um coronel prestes a realizar um ataque infundado a um flanco alemão. Porém, o roteiro do filme soçobra por sua desdramatização tendente ao triunfalismo unilateral.
Malgrado apresentar os aspectos mais perturbadores de uma guerra (extrema violência, cadáveres humanos e animais espalhados pelo terreno em que os personagens caminham, etc.), o enredo claramente escolhe um lado, demonstra-se indulgente em relação a um grupo de soldados em detrimento de outros. Os alemães são maus por si mesmos; os aliados anglofílicos são glorificados, sobretudo por emularem as lembranças do avô combatente do próprio diretor. Ou seja, a guerra é ruim, mas vencê-la é um direito dos bons soldados? Bastante questionável esta moral torpe que instaura-se no desfecho do filme.
Num dado momento, o cabo Schofield fere a sua mão esquerda numa cerca de arame farpado. Seu companheiro de missão ajuda-lhe a realizar um curativo e brinca consigo: “em breve, poderás masturbar-se novamente”. Ele responde, espirituosamente: “é a mão errada!”. Exceto por este diálogo, pouco há de aproveitável nas falas contidas no roteiro co-escrito pelo próprio diretor. E mesmo as proezas técnicas do fotógrafo Roger Deakins soam gratuitas ou pouco expressivas na nulidade dramática do percurso efetuado por um soldado aparentemente imbatível, que desvia-se milagrosamente de vários tiros, que parece não sentir dor apesar da abundância de ferimentos, que providencia um cantil de leite para um bebê faminto encontrado numa trincheira improvisada. Politicamente, isso chega a ser torpe.
É neste momento que o documentário “Para Sama” (2019, de Waad al-Kateab & Edward Watts) surge como brilhante contra-exemplo. Realizado a partir do reaproveitamento de imagens pessoais da co-diretora, que expõe a si mesma e à sua família de forma mui corajosa no filme, “Para Sama” trata-se, conforme o próprio título deixa evidente, de uma carta audiovisual para a filha da protagonista, nascida em 2015, em meio aos constantes bombardeamentos na cidade de Aleppo, na Síria. Na ocasião, a protagonista (que utiliza um sobrenome pseudonímico, a fim de proteger-se de perseguições ditatoriais) estudava Ciências Econômicas na Universidade local, mas logo converte-se em colaboradora jornalística sobre os distúrbios bélicos que assolavam o país. E tudo isso aparece mui intimamente no filme. Pois a intimidade é também política!
Evitando submeter-se a qualquer tipo de censura, Waad al-Kateab filma as atividades de seu marido Hamza no hospital que constróem juntos. Recentemente graduado em Medicina, ele assume posições revoltosas em relação ao regime político local, participando de protestos que unificam cristãos e muçulmanos numa causa sobrevivencial comum. Mas as bombas freqüentemente disparadas via aeronaves russas acabam com o seu sossego: comumente, mulheres e crianças são trazidas para o hospital, avassaladoramente feridas. Há tanto sangue nas filmagens de Waad que, em dado momento, ela alega que “mesmo quando fecha os olhos, tudo o que vê é vermelho”. É muito difícil assistir a este filme, porém extremamente necessário!
Ao longo de toda a duração do filme, Waad tenta provar à sua filha pequena (convertida em futura espectadora da obra) que sua vinda ao mundo não foi desprovida de sentido, que, mesmo em meio a tanto sofrimento, ela representa uma bem-vinda esperança. Num eco climático desta prova, ela filma o ressuscitamento de uma criança nascida a partir de uma operação cesariana de emergência, quando sua mãe, grávida de nove meses, foi trazida ao hospital, inconscientemente. Trata-se de uma das seqüências emocionais mais intensas do ano, asfixiante em cada movimento cuidadoso dos médicos responsáveis por este salvamento. “Para Sama” é um extraordinário documentário, portanto, merecidamente premiado em mais de um festival de cinema internacional. E foi merecidamente indicado ao Oscar de Melhor Documentário, ainda que não seja necessariamente o favorito nesta categoria. Mas é lícito mencionar um filme com tamanho apelo sentimental e militante por conta de suas láureas técnicas? De forma alguma. O trabalho ainda ativo da co-diretora e de seu esposo no exílio que o diga!
Em mais de um momento da sua narração, Waad al-Kateab interroga-se acerca de como reagirão os audientes mundiais aos clamores que externa. Ela pede ajuda, em nome de seu país, e, numa decisão mui autoritária, é obrigada a fugir da Síria, abandonando a sua casa e os lugares que ama. As memórias de sangue a acompanharão perpetuamente, mas não a paralisam enquanto denunciante da situação de terror nacional em muito menos enquanto mãe e esposa amável. “Para Sama” é uma obrigação extra-cinefílica que expõe a guerra como aquilo que ela realmente é: independentemente de quem a vença provisoriamente (pois todos perdem numa guerra), o saldo restante é de morte e dor para inocentes que não sabem sequer por que estão sendo feridos. Uma pena que, em pleno século XXI, isso siga acontecendo. E pior: sendo oportunisticamente silenciado por órgãos tradicionais de imprensa!