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“Depois que aquele alarme de puberdade tocou, tudo começou a dar errado” — ou quando uma identificação legítima é também forçada!

“Depois que aquele alarme de puberdade tocou, tudo começou a dar errado” — ou quando uma identificação legítima é também forçada!

Desde que estreou, na segunda metade de junho de 2024, o longa-metragem “Divertida Mente 2” (2024, de Kelsey Mann) tornou-se um assunto onipresente: piadas envolvendo as representações emotivas da trama abundaram em peças publicitárias e o impressionante sucesso de bilheteria do filme foi logo exaltado. Porém, sob uma perspectiva no mínimo paradoxal, visto que, em diversas cidades, este lançamento ocupava a quase totalidade das salas. Invertendo a lógica de demanda e procura espectatorial, uma única produção era sobreposta a outros títulos tão ou mais interessantes que ela. Averiguar se o filme é bem-sucedido naquilo que expõe tornou-se secundário: era imperativo conferi-lo, quanto mais rápido melhor, para não ficar à margem das conversas, para que não fossem estragadas as possíveis surpresas do enredo, já que diversas cenas eram reproduzidas nas redes sociais. O poderio ideológico da Disney/Pixar revelou-se dominante, novamente!

Este não é o maior problema, aliás: no primeiro filme [“Divertida Mente” (2015, de Pete Docter & Ronnie Del Carmen], notamos algumas cismas convertidas em “virtudes” de caráter, no que tange ao delineamento da protagonista humana Riley (dublada por Kaitlyn Dias, na versão original do primeiro filme; e por Kensington Tallman, no segundo). Inteligentíssima, afabilíssima, loira e esportiva, Riley revelava-se também caprichosa e teimosa, sendo uma metonímia ideal das cidadãs estadunidenses em formação. Que a Alegria (Amy Poehler) aja de maneira ostensivamente egocêntrica, imperativa e dominadora em relação aos demais sentimentos diz muito sobre os valores ideológicos em jogo neste filme. E alegar que o enredo é prioritariamente direcionado ao público infanto-juvenil não é suficiente para justificar algumas destas sobreposições…

No segundo filme, a composição da mente da garota torna-se mais complexa, de fato, no sentido de que, ao completar treze anos de idade, ela assume-se como adolescente. Na primeira sequência, acompanhamos as suas emoções conduzindo as reações durante uma partida de hóquei, em que a competitividade da Raiva (Lewis Black), a prudência do Medo (Bill Hader, no primeiro filme; Tony Hale, no segundo), a cautela de Nojo (Mindy Kaling, antes; Liza Lapira, agora) e as reflexões provocadas pela Tristeza (Phyllis Smith) revelam um entrosamento assaz orgânico. Até que um alarme é ativado e a mesa de comando emocional torna-se alaranjada, demonstrando que uma emoção recém-chegada ameaçará o domínio ativo de Alegria: a aparição de Ansiedade (Maya Hawke) causa um rebuliço imediato, no sentido de que a antiga anfitriã encontra alguém ainda mais agitado e enérgico que ela!

Junto com Ansiedade, chegam Vergonha (Paul Walter Hauser), Inveja (Ayo Edebiri) e Tédio (Adèle Exarchopoulos), além de uma envelhecida Nostalgia (June Squibb), que é sempre obrigada a voltar para onde veio, quando tenta comentar alguma coisa. Em razão de Riley, agora, estar num acampamento que serve como averiguação de suas capacidades desportivas, para avaliar se ela pode ou não fazer parte de uma equipe profissional de hóquei, ela começa a mentir para ser aceita por colegas mais velhas, ao passo em que lida com a frustração de saber que suas duas melhores amigas mudarão de colégio. Em tese, trata-se de algo que todos nós enfrentamos, nalgum momento de nossas vidas, mas o modo como a Ansiedade é tematicamente privilegiada neste roteiro chama a atenção para um aspecto mui característico da atualidade: ao invés de as situações ficcionais serem expostas ao nosso cotejo íntimo, a fim de que possamos ou não nos identificar, estas surgem como imposições generalistas, de modo que quase todo mundo assume que é ansioso e que experimenta recorrentemente o mal-estar apresentado no filme. Não se nega que isso ocorra de maneira espontânea, mas, ao mesmo tempo, tal condição faz parte de uma programação ardilosa da faceta hodierna do capitalismo: é mister tornar todo mundo ansioso e duvidoso das próprias capacidades (intelectuais, físicas, afetivas, etc.) para, logo em seguida, apresentar tramas em que isso seja tematizado explicitamente, de modo que o espelhamento identitário redunde em garantia de lucro e divulgação. Foi o que aconteceu com este filme, durante a sua passagem pelos cinemas, reitera-se.

Tendo chegado — no final de setembro de 2024 — aos serviços de ‘streaming’, o filme não é tão mencionado hoje em dia — afinal, todos supostamente o viram quando lançado nos cinemas, três meses antes — enquanto os efeitos da ansiedade, categorizada como transtorno, são quase unanimemente identificados em jovens e adultos que desfrutam do benefício das consultas ou terapias psicológicas/psiquiátricas. Remédios ansiolíticos são comercializados aos borbotões, e a palavra “gatilho” surge como um automatismo em conversas, nas quais evita-se tocar em assuntos delicados, pois estes supostamente desencadeariam traumas e/ou crises desconfortáveis. Com isso, as fórmulas de “conforto” anistórico são ofertadas em continuações, refilmagens e plágios cinematográficos ou literários. Consome-se a mesmice como algo que oferece um arremedo de proteção emocional, frente às ameaças das novas sensações, trazendo novamente à tona algo que já era denunciado pelos teóricos da Escola de Frankfurt, ao analisarem a estandardização hollywoodiana, durante o início do século XX. “Divertida Mente 2” é um mau filme? Em suas qualidades intrínsecas, até que não: ao final, tanto Ansiedade quanto Alegria aprendem valiosas lições e percebem que o melhor é trabalhar em equipe. Intui-se que isso aconteceria, no desfecho, durante a própria leitura da sinopse. Porém, naquilo que a produção representa, enquanto disseminadora de padrões homogeneizantes do ‘american way of life’, ele é implacável: ganhou tanto dinheiro que, em manchetes, este é o aspecto sobremaneira destacado. Quem não viu o filme ainda, está por fora. Tu arriscarias passar por algo semelhante, na conjuntura atual?

Wesley Pereira de Castro.

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