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“Antigamente, eu conhecia todo mundo; hoje em dia, quase ninguém”: o que será que mudou, depois que acabou a pandemia?

“Antigamente, eu conhecia todo mundo; hoje em dia, quase ninguém”: o que será que mudou, depois que acabou a pandemia?

No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a COVID-19 como uma pandemia, mas ainda não houve uma declaração oficial acerca de seu término. Ou seja: a doença segue por aí, transmutando-se, criando novas variantes viróticas. E, passados cinco anos desta data fatídica, é interessante saber da estreia comercial de um filme como “Tempo Suspenso” (2024, de Olivier Assayas), que versa justamente sobre situações ocorridas durante a quarentena, requerida como forma de conter a transmissão da doença. Levando-se em consideração a conjuntura privilegiada do enredo, o diretor reflete sobre como as condições aquisitivamente favorecidas de algumas pessoas não impediram o surgimento de paranoias relacionais, a partir de sua própria experiência interativa. Muito corajoso o modo como ele retratou a si mesmo, através de um alter-ego (vivido por Vincent Macaigne), aliás!

O enredo deste filme, ostensivamente autobiográfico, passa-se em 2020, justamente: o protagonista Paul Berger, inspirado no diretor, é um cineasta que, após realizar um filme em Cuba [“Wasp Network — Rede de Espiões” (2019, de Olivier Assayas), no caso], fica confinado numa residência campestre, onde vivera na infância. Ao comentar que a natureza não é tão bem abordada nos filmes quanto é nas pinturas, Paul revisita as paisagens arbóreas e floridas daquele ambiente, lamentando que as pessoas que ali vivem não sejam as mesmas. Ele está convivendo, há alguns meses, com seu irmão Etienne (Micha Lescot), que é crítico musical, além das namoradas de ambos, Morgane (Nine d’Urso) e Carole (Nora Hamzawi). A primeira delas tenciona realizar um documentário sobre o bicentenário de nascimento do escritor Gustave Flaubert [1821–1880], enquanto a segunda foi recentemente “assumida” por Etienne, já que ele era casado quando se conheceram. O humor inconstante dos irmãos a assustará, por vezes.

O quarteto supracitado de personagens é afeiçoado às questões eruditas, conversam sobre filmes mudos, música clássica e literatura canônica francesa de maneira absolutamente coloquial, ao mesmo tempo em que não escondem as suas benesses classistas: praticam ioga, advogam a coleta seletiva do lixo doméstico e encomendam produtos o tempo inteiro, através de aplicativos cibernéticos de vendas, que tiveram as suas atividades hipertrofiadas durante a pandemia. É uma deixa para que percebamos como Paul e Etienne divergem, em âmbito ideológico: enquanto o segundo reclama que o primeiro se tornou um “consumidor por vingança”, adquirindo compulsivamente itens de que não precisa, Paul alega que Etienne “esconde-se num refúgio da adolescência, o ‘rock’”. Um reclama sobre as más condições de trabalho na sede da Amazon, enquanto o outro repete, de maneira psicótica, os protocolos de segurança concernentes à higienização das encomendas entregues. Não demorará para que ambos briguem por uma bobagem qualquer: o volume em que Paul assiste a um filme com a sua namorada, por exemplo.

Ainda que ‘Tempo Suspenso” funcione como uma válida autocrítica acerca de como o diretor e seus amigos desenvolveram comportamentos obsessivos a partir da reiteração midiática do pavor de contágio, os diálogos não são tão inspirados quanto noutras produções do realizador: o desfecho é deveras anticlimático, resvalando numa lógica meramente explicativa de como funcionam as heranças familiares, que vai na contramão do que é exposto no impressionante “Horas de Verão” (2008), para ficar num contraponto imediato, quase invertido, em seu espelhamento contextual. Comparando o roteiro deste filme com os seus trabalhos em obras iconoclastas como “Irma Vep” (1996), “Carlos, o Chacal” (2010), “Depois de Maio” (2012) e até mesmo “Personal Shopper” (2016), chega a ser frustrante que Olivier Assayas se exponha de maneira tão condescendente, não obstante assumir as caricaturas de sua classe social. Por conta disso, o filme não é dispensável naquilo que propõe enquanto drama: o que baliza as relações humanas na contemporaneidade? O confinamento pandêmico acentuou ou dirimiu o que as pessoas têm de pior?

Recomendamos este filme por seus apanágios autorais — afinal, um lançamento assayasiano é sempre digno de interesse — e pelo estímulo mnemônico contido nestas perguntas de final de parágrafo: o que será que aprendemos, ao lidarmos com um evento histórico de proporções devastadoras, como foi o surgimento da COVID-19, cujos efeitos foram agravados pela concomitância política envolvendo a extrema-direita, em diversos países? No Brasil, o terror perpetrado pelos adeptos do bolsonarismo continua a provocar adoecimentos, em conotação moral. As pendengas procedimentais levadas a cabo pelos irmãos Berger, em “Tempo Suspenso”, servem como estímulo tragicômico àquilo que fazemos no dia a dia: será que não oprimimos outrem com um excesso de zelo advindo do problemático agendamento noticioso envolvendo fatores externos? Eis apenas um ponto de partida interpretativo, a partir daquilo que o filme desvela…

Wesley Pereira de Castro.

Imagem de divulgação: https://images.squarespace-cdn.com/content/v1/5bbcad0f2727be3646b9fee1/a229bca0-9513-47b7-876a-0fc1b7792289/63713C66-019F-4516-9F7D-DC4683A0042B.jpeg

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