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Algoritmos da podolatria no fim de eras: a paixão melancólica enquanto estilo cinefílico confessional!

Algoritmos da podolatria no fim de eras: a paixão melancólica enquanto estilo cinefílico confessional!

Levando-se em consideração os eventos reais que são transversalmente desenrolados na merencória reconstituição de época levada a cabo pelo apaixonado Quentin Tarantino em “Era uma Vez em… Hollywood” (2019), não é surpresa para nenhum espectador que o filme termine num banho de sangue. Entretanto, as reações excessivamente risórias ao seu desfecho revelam um sintoma mui agressivo, justamente aquele condenado ostensivamente pelo diretor e do qual é erroneamente acusado: se ele efetivamente glamoriza a violência, isto ocorre enquanto obediência a convenções particulares de gênero cinematográfico e não como reflexo de um testemunho moral. E nisso reside uma das grandes forças da obra-prima de maturidade e reflexão cinéfila realizada por este grande reinventor hollywoodiano: a consecução – não necessariamente voluntária – de um preceito sugerido pelo filósofo Gilles Deleuze [1925-1995] quanto ao enfrentamento do fascismo midiático. Diz o autor, no capítulo conclusivo de seu livro sobre a “imagem-tempo”: “ultrapassar a informação se faz a um só tempo dos dois lados, rumo a duas questões: qual é a fonte, e qual é o destinatário?”. Discorramos sobre isso…

Se, em seus filmes mais recentes, deveras pretensiosos em seu caráter épico-referencial, Quentin Tarantino foi acusado por parte da Crítica de manipular negativamente os fatos históricos com vistas ao gozo vingativo (uma de suas marcas tramáticas registradas), em “Era uma Vez em… Hollywood”, ele repete esta tendência de maneira brilhante e autocrítica: suprime o aspecto mais anunciado de seu clímax violento num mote tergiversador que escancara o desamparo nostálgico do diretor. O brutal assassinato da atriz Sharon Tate [1943-1969], no nono mês de sua gravidez do cineasta Roman Polanski, surge como metáfora de um morticínio generalizado, em termos geracionais. E tudo no filme anuncia aquilo que seria insuportável demais de ser visto, por mais sentido que seja, antes, durante e depois…

Logo na seqüência de créditos iniciais parciais, Quentin Tarantino demonstra a renovação da genialidade acachapante de seus primeiros longas-metragens: os nomes de Leonardo DiCaprio e Brad Pitt aparecem sobrepostos às silhuetas dos atores invertidos, antecipando um amalgamamento de personalidades que representa um evidente alter-ego do próprio diretor. Os protagonistas inseparáveis do filme são: um ator consagrado de seriados de TV que tenta consolidar-se no cinema, mas é subjugado a papéis de vilão e esquece continuamente as suas falas, apesar de ter excelentes idéias de “Hamlet mau”; e um dublê marcado por uma acusação de uxoricídio, que age como uma espécie de faz-tudo do ator, até ser categorizado pelo narrador onisciente como “pouco mais que um amigo, pouco menos que uma esposa”. A ausência de sexo no filme, inclusive, deixa patente o alto quociente de sublimação homossexual masculina abundante naquele contexto de amor livre que marcou a década de 1960. Quentin Tarantino confessa-se de maneira bastante íntima nesta obra-prima emocional, portanto!

Todo o percurso que faz com que o ator decadente Rick Dalton trabalhe com o cineasta italiano Sergio Corbucci [1927-1990] assegura o reconhecimento de traços personalísticos do próprio Quentin Tarantino no personagem, magnificamente interpretado por Leonardo DiCaprio. Circundado por um não menos excelente Brad Pitt e por uma Margot Robbie em estado de graça, este protagonista envolve-se em longos diálogos existenciais (outra marca registrada do diretor), que obrigam-no – junto ao espectador – a refletir sobre características fundamentais de sua profissão e, por extensão, de sua vida pessoal. Seja quando é impulsionado por um produtor excêntrico mas bem-intencionado (Al Pacino) a redimensionar sua carreira através de faroestes ‘spaghetti’, seja quando ouve de uma inteligentíssima companheira infantil de elenco um elogio transformador. Rick Dalton, ao duvidar provisoriamente de seu talento, mas logo recompondo-se através da entrega completa às suas diligências actanciais, metonimiza o próprio Quentin Tarantino em devoção ambivalente aos paradigmas clássicos da Sétima Arte. Mas, obviamente, a relação especular é muito mais complexa do que qualquer desvendamento imediatista permita supor…

Graças à minuciosa e extraordinária direção de fotografia de Robert Richardson, colaborador habitual do cineasta, as obsessões desejosas do diretor são magistralmente reproduzidas na tela, principalmente no que diz respeito ao modo sacrossanto com que focaliza os pés femininos, em ‘close-ups’ hiperfetichizados. Porém, são inúmeros os instantes de antologia alcançados neste filme, com destaque para o momento insigne em que Sharon Tate adentra a sessão de um cinema em que está sendo exibido um filme que protagonizara [“Arma Secreta Contra Matt Helm” (1969, de Phil Karlson)] e vangloria-se ao perceber que a platéia gargalha nas cenas de comicidade intencional desencadeadas por sua estabanada personagem. De repente, os sorrisos cedem lugar aos aplausos numa cena de artes marciais coreografada por Bruce Lee [1940-1973, interpretado no filme, com rigorosa fidelidade estereotípica, por Mike Moh], o que faz com que a atriz relembre seu treinamento, numa montagem sumamente epifânica. Tal qual ocorre em muitos outros momentos do filme, esta seqüência é capaz de levar os espectadores que compartilham as referências contextuais e etárias do diretor às lágrimas.

Em mais de um sentido, “Era uma Vez em… Hollywood” é uma obra-prima de pura cinefilia e correção histórica – por mais que recuse a fidedignidade reprodutiva dos eventos reais que fundamentam o roteiro. As pistas falsas estão lá [vide o acompanhamento rigoroso de horários nos prolegômenos da atordoante seqüência final], e são assumidas como tal. Se enganam outrem, isso tem a ver com o descumprimento do conselho deleuzeano supracitado: a violência no filme é mostrada de maneira dilaceradora, afetando corpo e espírito. Se há glamourização a partir daí, de quem é a responsabilidade? Fica a pergunta autocrítica, em meio às loas intensificadas que este filmaço merece… Brilhante testamento de (fim de) época!

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