O diálogo acima pertence ao filme dinamarquês “Não Fale o Mal” (2022, de Christian Tafdrup), recém-regravado por Hollywood. A versão homônima estadunidense, dirigida pelo britânico James Watkins, estreou nos cinemas em setembro de 2024, e surpreendeu pela celeridade com que foi realizado: para que refilmar, tão rapidamente, um filme que é quase inteiramente falado em inglês? A desculpa da inabilidade dos norte-americanos em relação às legendas é insuficiente neste caso. Que o roteiro modifique a nacionalidade dos personagens talvez seja uma pista. Como ainda não vimos esta segunda versão, falaremos sobre a produção original…
Na trama de “Não Fale o Mal”, acompanhamos o passeio de Bjørn (Morten Burian) pela Itália, com sua família, a esposa Louise (Sidsel Sien Koch) e a garotinha Agnes (Liva Forsberg). É temporada de férias, e o país está repleto de estrangeiros. Bjørn parece demonstrar interesse sexual reprimido nalguns deles, olhando-os de maneira lânguida, enquanto emociona-se ao som de um coral que executa o “Lamento della Ninfa”, do compositor Claudio Monteverdi [1567–1643]. No desfecho do filme, esta canção será novamente executada, enquanto é ocorre uma situação de extrema crueldade. Mas vamos devagar…
Após a conversa que estabelece com uma família holandesa, liderada pelo impetuoso Patrick (Fedja van Huêt), Bjørn crê que encontrou um amigo espontâneo, e aceita o convite para, terminadas as férias, passar uma temporada na residência rural deles, no Sul da Holanda. Tal qual Bjørn, Patrick também é casado. Sua esposa Karin (Karina Smulders) é extremamente simpática, e eles têm um garotinho, Abel (Marius Damslev), que padece de um problema físico que interfere em suas tentativas de expressão vocal: aparentemente, sua língua é muito pequena. Para piorar, perceber-se-á que ele é tratado com severidade por seus pais, ao passo em que Agnes é deveras mimada. Quando ela perde o seu coelhinho de pelúcia, por exemplo, Bjørn precisa voltar para procurá-lo, o que impressiona Patrick. Seria tudo fingimento?
Algum tempo depois, ao voltarem para a Dinamarca e restabelecerem a sua rotina doméstica, Bjørn e sua esposa recebem um cartão de Patrick, reforçando o convite para que eles viajem até lá. Daí para a frente, divergências banais desencadearão reações extremamente agressivas, como quando Louise explica que é vegetariana e, ainda assim, aceita provar um pedaço de carne de javali, mediante a insistência de seu anfitrião neerlandês. Assustada com as explosões de fúria de Patrick, a família dinamarquesa ameaça fugir daquele local em mais de uma oportunidade, mas sempre acaba voltando. Se for dito, neste texto, que eles consentiram, involuntariamente, com aquilo que sofrem, incorreremos na péssima tendência de culpar a vítima? A pergunta é retórica, e o filme é auto-elucidativo, não sendo casual que tenha chamado tanto a atenção dos críticos, quando foi lançado.
Suspendemos a sinopse fílmica por aqui, a fim de permitir que os espectadores que ainda não tiveram acesso à referida obra experimentem o crescendo de suspense que advém do roteiro, escrito pelo diretor e por seu irmão Mads Trafdrup. Além de uma análise mui percuciente do que, hodiernamente, convencionou-se tachar de toxicidade relacional, o enredo de “Não Fale o Mal”, desde o seu título imperativo, questiona o porquê de permitirmos que algumas pessoas indecorosas e/ou mal-intencionadas tenham influências progressivas em nossas vidas. Como estamos em período eleitoral, em muitos países, não podemos enxergar com naturalidade que um candidato à presidência nacional naturalize o boato de que imigrantes alimentam-se de seus animais de estimação ou que, em debates à prefeitura de Estados brasileiros, um candidato atire uma cadeira noutro (por mais que este último tenha provocado isso) e outro aponte o dedo médio para um adversário e grite “chupe aqui, para ver se sai leite!”. A regravação do filme, em si, traz consigo outros problemas discursivos. Voltaremos a todos estes assuntos, eis uma certeza: basta sobrevivermos a este período assustador da História contemporânea, ao qual tanto assistimos quanto protagonizamos!
Wesley Pereira de Castro.