Desde a primeira vez que bati o olho na página de João Marques, influenciador digital, estudante de psicologia e um tipo de coach detox de “masculinidade tóxica” (embora ele não use exatamente esses termos), confesso que o achei com um pé na picaretagem. Em seu conteúdo, basicamente, as mulheres são sempre vítimas, e os homens estão sempre errados. Um maniqueísmo caricato difícil de caber em psicologia seria. Tudo soava militância disfarçada de psicologia que diz aquilo que um certo público-alvo quer ouvir. Se João Marques se promovesse apenas como militante, como integrante de algum tipo de coletívo político-identitário, menos mal. Mas ao enfiar a psicologia na história, era de se esperar um rigor científico a mais.
Por exemplo, em uma de suas postagens, João Marques se lança a explicar o desejo dos homens por mulheres mais novas [1]. Sua explicação fica exclusivamente nos aspectos comportamentais, e a raiz do “problema” estaria na “construção social”, na “estrutura patriarcal” e mais outros jargões bastante presentes em discursos militantes. Marques chega a afirmar categoricamente que qualquer tentativa de explicação a respeito da preferência de homens por mulheres mais jovens a partir de predisposição natural e biológica é “uma bobagem”.
Só que muito provavelmente não é. Longe de querer propor um determinismo biológico, também não dá para partir para um extremo oposto e arrancar a biologia da química da atração. É bem verdade que os aspectos sociais são muito preponderantes nos modos como homens e mulheres se relacionam e assumem papéis de gênero – sobre isso, recomendo o livro “Testosterona Rex”, eleito o melhor livro de ciência de 2017 pela Royal Society, escrito pela psicóloga Cordelia Fine [2] – mas certamente a preferência dos homens por mulheres mais jovens é em grande parte um reflexo da seleção natural e guarda uma correlação com fertilidade e idade mais propícia para a reprodução: ao longo de gerações, homens que preferiram mulheres jovens fizeram a escolha mais acertada do ponto de vista reprodutivo e, logo, da perpetuação da espécie. A discussão sobre os limites do biológico e do social é muito longa e um exemplo de abordagem equilibrada são esses vídeos do paleontólogo e divulgador científico Pirulla [3] [4].
Por ironia do destino, nas últimas semanas o influenciador João Marques sofreu um contragolpe em seu feminismo de resultado, ao ter sido descoberto enquanto plagiador de uma MULHER [5]. A vítima foi a pesquisadora, psicologa, professora da UnB e pós-doutora em psicologia clínica Valeska Zanello. Aparentemente, o influenciador plagiou mais coisa além do trabalho de Valeska. Vindo a público, o plágio rendeu muita polêmica e discussão. João Marques chegou a fazer uma retratação pública, em seguida apagada. Ao longo do imbróglio, o estudante de psicologia, que tinha mais de 300 mil seguidores no Instagram, perdeu mais de 100 mil; enquanto Valeska, que tinha em torno de 25 mil seguidores, ganhou cerca de 100 mil e com justiça.
Isso leva a uma questão importante: o modo como as redes sociais viraram um encurtador de caminho para pessoas que almejam reconhecimento intelectual, mas acham muito demorados e rigorosos os parâmetros científicos da área acadêmica. O meio digital dá retorno mais rápido e dá mais dopamina que o meio acadêmico. Isso acaba seduzindo muita gente. O trecho abaixo, retirado de uma das notícias sobre o plágio, mostra o descompasso entre tempo de pesquisa e tempo de engajamento em rede social:
“Há 25 anos estudando a saúde mental das mulheres, a pesquisadora e psicóloga Valeska Zanello passou um ano dedicando 15 horas do seu tempo por dia, de domingo a domingo, para escrever o livro “Saúde Mental, Gênero e Dispositivos: Cultura e Processos de Subjetivação”. Colocou nele três anos de material coletado. E, depois de todo o esforço, conta que viu sua obra plagiada pelo estudante de psicologia João Marques, que faz sucesso no Instagram falando sobre comportamentos masculinos.”
A pesquisa aprofundada demanda tempo e longos períodos de silêncio para se absorver conteúdo, conhecimento e informação. Ao contrário, as redes sociais priorizam a superficialidade, a rapidez, e odeiam o silêncio. Para obter engajamento e a dopamina dos likes e do aumento de seguidores, é preciso estar sempre produzindo, dizendo coisas, trabalhando para plataformas como Facebook, Youtube e Instagram.
Outra contraposição clara entre meio acadêmico e meio digital está em seus processos de validação. Na área de pesquisa, é preciso seguir padrões rígidos de escrita, como as regras da ABNT, e submeter a produção ao processo conhecido como “revisão por pares”, em que profissionais/pesquisadores de uma mesma área de pesquisa ou áreas correlatas avaliam a produção submetida em busca de erros, fragilidades metodológicas ou apenas para propor aprimoramentos. Um processo trabalhoso e por vezes demorado. Já nas redes sociais, quem produz um conteúdo, em regra, não precisa submetê-lo a ninguém. Basta publicá-lo e pronto. A “validação” não se dá pelo expertise de corretores/avaliadores, mas pela própria audiência, pela quantidade de seguidores que um determinado perfil consegue obter.
Muitas pessoas já perceberam isso e optaram pela ligeireza. Para que gastar tanto tempo submetendo o meu próprio conteúdo a processos de validação tão demorados se eu posso colocá-lo diretamente nas redes, investir na forma, na embalagem, no impulsionamento, ganhar seguidores e obter (auto)promoção? Na esteira da opção pela rapidez, a coleta superficial dos dados e o encurtamento da análise tornam-se atalhos e, por vezes, o plágio também. “Isso tem muito a ver com a sociedade do espetáculo que quer resultado imediato. E parece que é comum. É para a gente pensar“, diz Valeska, a vítima plagiada.
Outro atalho sedutor da produção de conteúdo nas redes sociais é embalar o conteúdo produzido de acordo com o gosto do freguês, como forma de aumentar o engajamento e o impulsionamento do material. Isso é um problema, porque aos poucos o produtor torna-se refém de seu público. Mais uma vez, isso é algo que contraria a pesquisa científica séria, já que a produção de conhecimento, quando feita com ética e responsabilidade, não tem necessariamente que agradar a ninguém (em alguns casos, ela vai desagradar).
Nesse sentido, por exemplo, ao enquadrar a atração que homens sentem por mulheres jovens como apenas machismo e um problema comportamental, é possivel que João Marques esteja mais preocupado em dizer o que seu público-alvo quer ouvir, em agradar o seu target, do que em divulgar psicologia séria. Isso reforça a narrativa de que o homem está sempre errado e precisa sempre se desconstruir, o que facilita o influenciador a vender seu combo, que inclui palestras e trabalhos de grupo para desconstrução da “toxidade masculina”. Do contrário, se não há algo a se desconstruir, há menos o que se vender.
Nada disso significa que o estudante de psicologia não possa se tornar um bom divulgador de conteúdo científico, mas ele e todos nós, divulgadores em geral, devemos estar atentos às armadilhas da velocidade das redes e à sedução da autopromoção. E cabe à divulgação científica o desafio de buscar soluções para o descompasso entre o tempo de pesquisa e o tempo de engajamento nas redes sociais imposto pela lógica dos algorítmos, vorazes por produção e que odeiam o silêncio.
Referências:
[1] https://www.instagram.com/p/CYZ4EvDMtGV/
[3] https://www.youtube.com/watch?v=2igmSurytzA
Uma resposta
Boa reflexão. É evidente que o plágio acadêmico antecede as redes sociais, mas de fato essa cultura do agradar a todo custo é incompatível com a produção científica. Eu me senti identificada quando você fala dos jargões da militância, sinto o mesmo o tempo todo.