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Memoires

Memoires

Memórias…

Eu não sei quanto a vocês, mas eu tenho algumas memórias que são persistentes. Dirão que todas são; afinal é essa a função da memória. Mas há aquelas – volta não volta – que nos surgem no anfiteatro da mente, como uma sessão inesperada de cinema, e nos momentos mais imprevistos… Sabem do que falo?

É verdade que também podemos forjar esses momentos… Bom; forjar é um termo forçado porque a memória forma-se independentemente da nossa vontade, mas podemos dar-lhe uma força especial se quisermos… Há aqueles momentos em que dizemos: quero reter isto; conforme é, conforme está, conforme me sinto… E já está: voilá. A maravilha desta acção é que esse momento fica disponível para o nosso uso quando bem entendermos; poderemos evocá-lo quando bem quisermos…. Estão a ver?

É diferente da dinâmica normal da mente. A dinâmica normal da mente assalta-nos com lembranças – regra geral, más – e frequentemente espoletadas por coisas impercetíveis – no imediato, digamos -, porque é essa uma das funções primordiais da nossa mente: alertar-nos para os perigos. Por isso, em nome da nossa sobrevivência, nós temos um sistema interno que nos inunda com más recordações – por defeito de função – e sem nos dar qualquer aviso. É por isso, também, que no meio de um dia bom somos aperreados com lembranças tristes; é uma forma da nossa mente nos tentar proteger de eventuais perigos, recordando-nos de outros dias bons que acabaram menos bem. A nossa mente só quer o nosso bem-estar, mas, tal como numa relação amorosa a nossa híper-proteção do outro pode acabar por abafá-lo e destruir-lhe a individualidade, o mesmo se passa entre a nossa mente e nós. Infelizmente, nós não poderemos dar um tempo à mente nem deixá-la; estamos presos a ela para a nossa eternidade. Mas não há nada mais a fazer aqui; senão aprender a trabalhar com o que o Cérebro nos dá.

Cérebro e mente são coisas distintas; embora sejam frequentemente usadas como sinónimos e numa perigosa confusão. O Cérebro é um órgão do corpo humano, como o Coração e os Pulmões; e confundir a mente com o Cérebro é o mesmo que confundir a respiração com os Pulmões ou a circulação sanguínea com o Coração. A mente é a expressão do Cérebro, tal como a circulação do sangue é a expressão do Coração e a respiração a expressão dos Pulmões… Ou, se preferirem uma metáfora, o Cérebro é o Hardware e a mente o Software. E, assim dito, o Cérebro interpreta as instruções da nossa mente para as nossas acções.

Vejam; há cientistas e investigadores que dedicam a vida inteira ao estudo destas matérias e eu sei que não posso reduzir a complexidade do funcionamento do Cérebro e da mente desta maneira. Afinal, como poderia fazê-lo; como posso reduzir a um parágrafo a vida de tanta gente?!

Esta redução tem apenas um efeito cénico e uma função: trazer para a consciência de quem me lê esta dualidade Cérebro/mente; e consciencializar que não são a mesma coisa, apesar de estarem profundamente ligados. Quanto a tudo o resto que está por detrás, os processos hormonais, fisiológicos, físicos, químicos, etc, assumo que desconheço o suficiente para não ser considerado um especialista, mas assumo também que não o pretendo ser; a minha abordagem – usando, de novo, o mesmo tipo de metáfora – é da perspectiva do utilizador e aquilo que exploro será – como direi? – o Front-end.

E nesta exploração – da perspectiva do utilizador – não estou sozinho, pois não?

Somos milhões; bem mais do que os especialistas que sabem como «a coisa» funciona… Mas que importa saber como funciona o Cérebro se ainda assim não se souber usá-lo?

Há quem diga que um dos maiores males do nosso tempo é precisamente não sabermos usar os nossos Cérebros; e que hoje vivemos mais como vítimas deles do que como seus detentores. Uma leitura um tanto injusta para o Cérebro; não acham?

Afinal, tudo o que o Cérebro faz é interpretar as instruções da mente que, por sua vez, continua a respeitar a sua arquitectura inicial; uma arquitectura que levou milhares de anos a construir e que tudo o que quer é proteger-nos, garantir a nossa sobrevivência e instruir-nos em como podemos viver mais um dia…

O Cérebro não sabe o que fazer com a segurança e a abundância em que vivemos hoje, porque evoluiu num contexto onde, a qualquer momento, poderíamos ser atacados por um animal selvagem e devorados, ou onde teríamos de comer raízes e pequenos animais – ou insectos – até se ter a sorte de encontrar um animal maior e ter a audácia e o sucesso de o caçar. E são estas as instruções que permanecem gravadas na mente e continuam a comandar-nos. Mas como hoje não precisamos de fugir de animais selvagens, nem de caçar, vivemos um pouco desorientados ou aplicando os mesmos princípios primitivos ao nosso quotidiano; causando grande parte dos desastres que vimos acontecerem.

Mudará, isto, algum dia?

Não sei… Presumo que esta alteração de Software levará outros milhares de anos a acontecer; se acontecer. Mas entretanto, se tomarmos consciência de como os nossos Cérebros funcionam, talvez possamos ler nas entrelinhas e não sermos manipulados pelas nossas mentes, fazendo – por vezes – coisas que depois nos arrependemos e até nos perguntamos como fomos capazes de as fazer. Todos nós temos coisas assim, não temos?

Bom; vamos ao que importa?

Quando a mente nos enche de coisas boas, não há problema algum. O problema é quando nos inunda com coisas más. Por isso, há pouco, referi que podermos forjar uma boa recordação; para quê?

Para usá-la como bóia salva-vidas num dia mau…

Eu descobri isto por acaso – e não devo ser o único; sempre que me acontecia alguma coisa má – constatei – isso marcava-me de tal maneira que jamais o esqueceria. E, por isso, perguntei-me se seria possível repetir esse processo com as coisas boas…

E é. O Cérebro regista tudo, mas não de igual maneira, porque a sua primeira directiva é a nossa sobrevivência e, como tal, as más recordações são as que mais facilmente nos disponibiliza. Criar mecanismos que nos levem às boas memórias, é mais difícil, porque a mente e o Cérebro, por sua própria natureza, facilitam o processo de acesso às más lembranças; já, o acesso às boas, não e, quando se pensa em fazer isso, em dizer «vou registar este momento», até parece um disparate – coisa de gente maluca… Mas passei a fazê-lo; menos do que devia, devo dizer. No entanto, ainda assim, a arquitectura da mente leva quase sempre a melhor e é preciso alguma perseverança para a levar de vencida…

Vamos a um caso prático…

Em 2016, perdi o meu pai; de forma tão rápida e incompreensível que nem tive tempo de me despedir convenientemente… É claro que esse momento ficou aqui, na minha mente, para o resto da minha vida. Alguns meses mais tarde, numa espécie de viagem de recuperação, fui até aos Açores com a minha esposa e quis absorver, como um qualquer acto de redenção – sei lá do quê – toda aquela maravilha natural. Foi fácil?

Não. Nós tentámos; com fotos, vídeos, tudo, mas nada transmitia aquilo que víamos e sentíamos no momento. E eu resolvi, a dada altura, que queria reter um determinado momento em mim; queria poder senti-lo de novo quando bem entendesse…

Recordam-se que as memórias formam-se por si mesmas e que as más, no que respeita à recordação propriamente dita, têm primazia sobre as primeiras?

Pois bem… Sempre que evoco aquele momento – que forjei, digamos – logo a seguir lembro-me do meu pai; depois lembro-me que escorreguei numa cascata e ia partindo um dedo; e ainda de uma série de coisas desagradáveis que se foram sucedendo…

Como veem, é fácil ser subjugado pela negatividade, porque é como se o nosso hardware – o Cérebro – tivesse memória RAM dedicada para as más recordações; e a chave não é combater isto, porque é impossível, mas tomar consciência disto e, deixando esse tsunami de tristeza vir, esperar que as águas recuem e nos mostrem as maravilhosas coisas boas que nos aconteceram e que estão lá por de baixo. E quando as vemos fica tudo bem…

A mente também consegue fazer isso com as coisas boas, mas temos de a programar – ou melhor, reprogramar; no entanto, nem sempre foi assim e era a isto que eu me referia, inicialmente, quando mencionei o anfiteatro da mente…

De vez em quando, lembro-me de experiências boas que tive em criança…

Recordo-me, por exemplo, da sensação boa que era ir a Almada ao sábado de manhã, com os meus pais e irmã; e lembro especialmente um dia, um dia em que olhei para um cartaz, na fachada de um prédio na avenida 25 de Abril, e fiquei a vê-lo – tinha uma caravela; ficou-me na memória, até hoje, e nem sei porquê…

Lembro-me das vezes que íamos passear a Lisboa, atravessando o Tejo no Cacilheiro.

Também me lembro de ir com o meu avô à feira da ladra… e também me lembro da apanhar o cacilheiro, com a minha avó, em dias de temporal…

Lembro-me de como era bom saber que ia andar de metropolitano; quando este ainda era uma linha bifurcada e tinha pouca gente.

E tudo isto são coisas boas…

Eu acho que o nosso cérebro e a nossa mente são parte de uma máquina prodigiosa que não sabemos usar. Tudo aquilo que referi acima, são apenas algumas das muitas memórias – boas, como disse – da minha infância e que estão armazenadas na minha mente sem que eu tenha tomado qualquer medida para as reservar; formaram-se como se formam as memórias. Então, porque é que a dada altura da nossa vida, as boas memórias parecem desaparecer e passam só haver más lembranças? E porque é que precisamos de chegar a um ponto onde temos de dizer ao Cérebro que queremos memorizar algo para que isso nos sirva – um dia – o propósito de salva-vidas?

Eu tenho uma teoria…

Em crianças nós temos acesso a tudo o que o universo põe ao nosso dispor. Isto não é novo, existem várias correntes filosóficas que defendem que a criança é pura e um canal através do qual o universo transmite os seus ensinamentos; mas, para os menos metafísicos, há também quem defenda que o cérebro da criança é diferente, mais plástico, menos julgador e condicionado e, como tal, estará mais predisposto a aprendizados que em idades mais avançadas não estará. Partindo disto, poderemos assumir que – quase de modo transcendente – em criança saberemos melhor, mesmo que inconscientemente, como funciona a nossa mente e Cérebro e, por isso, até conseguimos que eles trabalhem em nosso favor. Mas… E depois?

O que nos sucederá?

O que fará com que deixemos de o saber e nos tornemos vítimas silenciosas do pessimismo e do medo com que a nossa mente nos vai acicatando?

Eu – é a minha opinião – acho que todo o processo de educação e inculturação que nos é imposto pela sociedade condiciona as nossas mentes, estruturando os nossos pensamentos e modos de pensar, levando-nos – a todos – a ser de uma determinada maneira; menos genuína, menos nossa, menos original… O resultado disto, para uma mente que já é incapaz de se adaptar a este mundo, é a estupidificação, pois se não há perigos eminentes e todos à nossa volta são iguais, que necessidade temos de uma mente desenhada para a sobrevivência?

Nenhuma… Mas é aí que a coisa dá a volta e, tal como um corpo com o sistema imunológico desorientado começa a atacar as células boas, também a mente começa a ver perigos onde não há e ameaças que não existem; mas não lhe levem a mal: tudo isto é assim, porque, perigos, é tudo aquilo que ela sabe identificar…

E nós?

Bom… Nós, se vamos continuar a deixarem-nos estupidificar, se não aprendermos como funciona os nossos Cérebro e mente, vamos acabar por dar razão àqueles que hoje dizem que somos mais vítimas da nossa mente e Cérebro do que seus detentores…

 

Imagem de Pete Linforth por Pixabay 

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