Diante da polêmica mundial sobre o uso do aparelho celular nas salas de aula e da tendência em proibi-lo, torna-se urgente falar sobre o tema, esmiuçar as possibilidades e pensar em formas alternativas de uso, afinal, esse tipo de tecnologia digital veio para ficar, retroceder parece não ser o caminho. Soluções simples para problemas complexos tendem a complicar ainda mais aquilo que já se mostra confuso.
Este texto pretende provocar uma reflexão sobre o uso das telas digitais, não só em você leitor ou leitora, mas em mim também, que enquanto escrevo as linhas que seguem, penso em quantas vezes acelerei as mensagens de voz recebidas pelo WhatsApp; nas vezes que gastei horas observando a vida alheia via redes sociais; em quantas vezes chequei o número de likes em uma postagem; nas vezes que transferi as informações que antes estavam guardadas no meu cérebro para um smartphone, que passou a ser minha memória para questões de localização, transações financeiras, contatos telefônicos e documentos diversos; em quantas vezes me distanciei das pessoas reais que estavam ao meu redor sem perceber; em quantas vezes…
Não é somente você que está cada vez mais dependente das telas, nós estamos!
Mas antes de escrever sobre esse novo modo de vida e de como nosso cérebro está se modificando com toda essa dinâmica tecno-social, preciso fazer uma pergunta:
Você está lendo este texto no smartphone ou no computador?
Se sua resposta foi no smartphone, saiba que você não está sozinho. Tomando como exemplo o país onde resido, Brasil, segundo levantamento feito pelo site de informações eletrônicas Electronics Hub, a partir de pesquisas digitais realizadas no ano de 2023 pela DataReportal — “Digital 2023 Global Overview Report”[1] — as conexões móveis celulares ativas no início de 2023 alcançaram 221,0 milhões de pessoas, número equivalente a 102,4% da população total do país. Considerando smartphones e computadores, a pesquisa revelou que, em média, os brasileiros ficaram 56,6% do dia acordados em frente a telas, cerca de nove horas do dia.
Curiosamente na mesma pesquisa, o Japão, país considerado altamente tecnológico, ficou em último lugar no levantamento realizado. Seus habitantes apresentam as taxas de tempo de tela mais baixas do mundo, com usuários destinando apenas 21,7% de seu tempo para os smartphones.
Sobre esta curiosidade, comparada com as taxas brasileiras de uso dos smartphones, o Professor Ildeberto Aparecido Rodello, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da USP, afirma que:
De certa forma, podemos tentar fazer a associação do impacto dessa diferença de tempo em tela, entre Brasil e Japão, considerando o desenvolvimento socioeconômico, mas é necessário também levar em conta fatores como a idade mediana da população brasileira e da japonesa, em que uma é mais jovem do que a outra, respectivamente, e questões culturais. Existe assim uma possibilidade de relação, porém, eu não afirmaria com certeza. (JORNAL DA USP, 29/06/2023)[2]
Diante dos números apresentados pela pesquisa e considerando que a escola representa um recorte da sociedade onde está inserida, é fácil concluir que o hábito de usar o smartphone durante o horário das aulas passou a representar algo cada vez mais presente na rotina escolar.
Os dados publicados pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) 2022, que avalia conhecimentos e habilidades de estudantes de 15 anos, em matemática, leitura e ciências, divulgou que 08 em cada 10 alunos brasileiros afirmaram que se distraem durante as aulas de matemática com o uso de smartphones. Em média, estes alunos tiveram 15 pontos a menos que os alunos mais concentrados e com menos tempo ao aparelho.
O gráfico a seguir apresenta um panorama geral sobre o tempo de uso dos smartphones nas aulas de matemática entre estudantes de vários países:
No Japão, que lidera o ranking geral em níveis de aprendizagem, apenas 18% dos estudantes afirmaram perder a concentração com o uso dos smartphones durante as aulas de matemática. Mas o vilão não está apenas no smartphone, várias escolas, públicas e privadas pelo mundo, surfaram na onda das novas tecnologias e implantaram o ensino baseado em plataformas digitais variadas, como tablets, notebooks, lousas digitais, entre outros itens que pareciam revolucionar o ensino.
Passado o boom tecnológico educacional, alguns países começaram a questionar o uso das tecnologias digitais na educação. Um desses países, a Suécia, que estava a caminho de se tornar um sistema educacional 100% digital, recuou e investiu 45 milhões de euros em 2023 na compra e distribuição de livros didáticos impressos. Um dos argumentos para a mudança radical foi a queda acentuada dos níveis de leitura dos alunos suecos.
Mas será que há de fato algum prejuízo cognitivo para as crianças e adolescentes em idade escolar com o uso prolongado de smartphones, tablets, notebooks e demais dispositivos eletrônicos?
Cérebros mal-acostumados e pilhados
As telas de smartphones, tablets e demais dispositivos eletrônicos entraram de vez no convívio humano e tirá-los dessa condição parece algo improvável. É como se retirássemos todos os carros de circulação décadas após terem sido inventados e adquiridos pela maioria das pessoas do planeta, um caos total.
Diante desse fato, é preciso se informar sobre como a crescente interação digital está transformando o cérebro humano. Alguns estudos da área da neurociência mostram um caminho de modificações, que precisam ainda de mais pesquisas e acompanhamento científico, porém já nos dão indícios do que pode vir em um futuro a curto prazo.
Uma das primeiras funções cerebrais a serem modificadas com o uso frequente de smartphones ou outras plataformas do mesmo tipo, é o planejamento. Antes da facilidade da internet ao alcance das mãos, assistir a um filme, seu programa favorito ou seu noticiário diário, deveria ser exatamente naquele horário determinado pela emissora responsável pela transmissão, logo, você deveria se planejar para no horário determinado estar na frente de sua televisão, rádio ou ao vivo no auditório. Todo o processo exigia planejamento prévio e uma ação pontual. Agora não há mais essa necessidade, a hora que você desejar pode assistir tudo via plataforma streaming, planejar, nesse caso, se tornou quase algo obsoleto.
Outra função cerebral que está sendo modificada é a atenção sustentada, representada pela capacidade de manter o foco em uma tarefa por um longo período. As facilidades em acelerar mensagens de áudio no WhatsApp, de pular partes de um filme, ficar antecipando vídeos ou apenas olhando perdidamente o TikTok, torna da mesma forma o cérebro mais acelerado, diminuindo a capacidade de manter a atenção sustentada em uma conversa longa com um amigo por exemplo. A vontade de acelerar o amigo aparece na mesma intensidade daquela antes utilizada para acelerar as mensagens de áudio, uma tragédia para a sociabilidade humana.
Algumas mudanças estruturais cerebrais também estão sendo observadas pelos cientistas. Áreas específicas do cérebro, principalmente em crianças e adolescentes, destinadas ao controle dos polegares, estão aumentando de tamanho, indicando que o uso dos polegares nas telas dos smartphones estão superando o uso dos dedos indicadores antes essenciais para a caligrafia. Essa mudança estrutural pode afetar o desenvolvimento e a destreza dos outros dedos, modificando por exemplo o movimento de pinça, que foi essencial no processo histórico da evolução humana.
Por fim, há nas telas interativas uma recompensa cerebral quase imediata, onde você comanda o que ver, quando ver e em que velocidade e se não lhe agradar, simplesmente você cancela. Esse tipo de interatividade passiva, compensatória e imediata, pode provocar no cérebro uma espécie de vício, um mecanismo de dependência por recompensas rápidas e de certa forma prazerosas. O indivíduo pode passar a descartar experiências reais diversas por entender que são entediantes e demoradas, em comparação com as atividades de interação digital.
Os itens citados até aqui representam apenas alguns recortes do observado pela ciência sobre o comportamento humano diante das novas tecnologias de interação digital, há muito ainda a ser dito, pesquisado e acompanhado. Mas fica fácil perceber que não podemos entregar nossas crianças e adolescentes ao mundo dos smartfones sem antes prepará-los, informá-los e de alguma forma, intercalar atividades reais e tridimensionais, com atividades bidimensionais e quase sempre passivas.
A falácia das soluções fáceis para problemas complexos
Na esteira das discussões sobre o uso dos smartfones nas escolas, alguns governos decidiram simplesmente proibir o uso do aparelho, como se tirar o problema da frente dos olhos dos educadores ajudasse na educação digital das crianças e adolescentes. O que esses governos se esquecem é que a escola é local de educar, não só para os saberes historicamente selecionados como essenciais, caso das disciplinas das áreas de exatas, humanas e artes, mas para o convívio em sociedade, e esse passa impreterivelmente pelo uso adequado das diversas formas de tecnologias digitais, entre elas e talvez mais urgente, os smartphones.
Durante a produção deste texto, conversei com meu filho sobre o tema aqui exposto e no auge de seus 22 anos de idade, já terminando a Universidade, me revelou de olhos arregalados, que sim, é realmente urgente fazer algo sobre o uso dos celulares em sala de aula. Minutos depois, foram meus olhos que se arregalaram, ao ouvir: “Mãe a senhora acha que eu fazia o quê durante minhas aulas de redação na época do Colégio? Às vezes eu ficava no celular vendo vídeos ou no joguinho, era muito difícil, a aula era muito parada. Já cheguei a colocar o celular na carteira e fingir que estava dormindo, mas na verdade, estava assistindo filme!”
Pensa em uma mãe passada!!
Quando me recompus, disse imediatamente que ia jogar fora o artigo que estava escrevendo, mas ele disse que não, que era preciso falar sobre o assunto e que na verdade, os alunos precisam de ajuda para combater o vício do smartphone, “eles estão pedindo socorro”. Resolvi então retomar esta escrita, mas com o compromisso de revelar minha experiencia, que me fez perceber ainda mais o tamanho do problema.
Proibir parece não ser o caminho, pois a criatividade humana diante da necessidade de atendimento ao vício encontrará caminhos alternativos para o uso. Será preciso mais, envolver os alunos, protagonistas da situação, em uma ampla discussão para a formulação de regras próprias a cada comunidade escolar, verdadeiros combinados legais, que nortearão o uso dos smartphones nas escolas.
Ao mesmo tempo, é urgente a educação digital desses alunos, para que além de aprender o uso adequado dos equipamentos eletrônicos digitais, consigam se regular enquanto usuários, selecionando melhor aquilo que consomem, confrontando informações para identificar com mais rapidez o que é fato e o que é fake, entendendo definitivamente quem é o dono de quem.
[1] Disponível em: https://datareportal.com/reports/digital-2023-global-overview-report — Acesso em 15/11/2024.
[2] Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/brasileiros-passam-em-media-56-do-dia-em-frente-as-telas-de-smartfones-computadores/ — Acesso em 15/11/2024.