Antes de tecer uma reflexão sobre a relação entre os avanços tecnológicos dos últimos tempos e o comportamento humano, façamos uma breve pausa para conceituar tecnologia. Muitos teóricos ao longo da história conceituaram tecnologia, para efeito do texto aqui exposto, tomaremos o conceito abordado por Longo[1] (1984) conceituando o termo como “o conjunto de conhecimentos científicos ou empíricos empregados na produção e comercialização de bens e serviços”.
Sem dúvida nenhuma os avanços tecnológicos acumulados ao longo da história facilitaram a vida diária da população mundial. Nessa esteira evolutiva, sem compromisso com a exatidão da linha do tempo, podemos citar os carros, os aviões, o rádio, a televisão, o telefone, as máquinas de uso doméstico e industrial, os computadores, os sistemas operacionais, a internet, as redes sociais, os smartphones, a inteligência artificial, a automação industrial, a robótica e tantos outros avanços nas áreas da saúde, engenharia, mecânica, entre outras. Mas e no âmbito do humano, evoluímos na mesma velocidade da tecnologia?
Se conceituar tecnologia foi algo relativamente fácil, conceituar o humano é algo bem mais complexo. Podemos iniciar com o entendimento de que o homem é um animal que pertence à família do homo sapiens e tal qual se encontra hoje, representa o nível mais alto de complexidade alcançado pela escala evolutiva humana. Antes que alguém conteste, esclareço rapidamente que chamo de “homem” a espécie humana, ou seja, sem distinção de gênero. Já o humano, entende-se como a humanidade presente no interior desse homem, com suas nuances más e boas, combinadas com a necessidade de viver em sociedade. Tarefa não tão fácil!
Partindo do homo sapiens, é possível registrar avanços físicos e mentais importantes para a evolução humana. O aspecto físico foi com o tempo se alterando, permitindo a postura ereta da coluna, um andar ágil e forte, consentindo múltiplas possibilidades de locomoção e interação com o novo mundo. O cérebro aumentou de tamanho, aumentando a quantidade de neurônios e suas conexões; surgiram novas funções cerebrais, seguidas do amadurecimento de novas regiões do cérebro; o pensamento foi influenciado pelos novos conhecimentos e ampliado enquanto percepção de mundo. Enfim, o homem estava imerso da condição de humano.
Ao ler as linhas anteriores é possível concluir que tanto a evolução do homem como da tecnologia contribuiu para um mundo melhor, mas justo e humano, porém é preciso dizer rapidamente que nada parece ser o que realmente é, pois não basta elencar os avanços físicos e mentais do homem em relação aos tecnológicos, é necessário considerar a influência do meio onde cada indivíduo vive em relação a sua condição humana.
A influência do meio na formação humana é tema estudado há séculos por grandes áreas como a Filosofia, a Sociologia ou a Antropologia. Sócrates (470 a.C.) acreditava que o homem para fazer o bem bastava conhecê-lo, ou melhor, o homem só fazia o mal por ignorância. Por essa razão, o filósofo levava o conhecimento a todos os cidadãos gregos e passou a representar um perigo para a elite mais conservadora de Atenas, por defender que o mundo era para todos e não para alguns. Sócrates foi o criador de um método denominado maiêutica, o qual “[…] consiste em forçar o interlocutor a desenvolver seu pensamento sobre uma questão que ele pensa em conhecer, para conduzi-lo, de consequência e consequência, a contradizer-se, e, portanto, a confessar que nada sabe” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 251)[2].
Para Platão (427 a.C.), ao nascer, o homem ganhava uma alma, a qual já possuía conhecimento de outras vidas. Esse conhecimento anterior classificava o homem em classes sociais determinadas. O mundo era o reflexo do mundo das ideias, dividido entre o mundo sensível e o objetivo. Já Aristóteles (384 a.C.) definia a humanidade como um conjunto de capacidades biológicas do homem, que, como substância, possuía forma (alma) e matéria (corpo).
Sócrates, Platão e Aristóteles tinham uma visão diferenciada sobre o homem quanto a sua capacidade de conhecer e evoluir no mundo. Ora esse homem podia conhecer e modificar seu entendimento e posicionamento no mundo, ora ele já estaria pré-determinado para tal conhecimento e disposição nesse mundo. No entanto, todos identificavam a alma como local das ideias e do conhecimento.
É René Descartes (1596 d.C.), que abriu espaço para o estudo dos diversos fenômenos corporais ao dividir o homem em duas naturezas e manifestações, duas substâncias diferentes, uma imaterial e outra material (dualismo cartesiano). Ele entendia que os fluidos ou espíritos animais estavam contidos no cérebro e que eles eram levados até esse local por meio de tubos, entrando em contato com o que ele denominava de res cogitans – coisa pensante. A parte material, o corpo, era denominado de res extensa – coisa externa. Assim, Descartes desenhava a possibilidade da existência do cérebro humano como “coisa pensante”, salientando a crença em um homem pautado pela razão como elemento essencial.
Mais tarde, o filósofo John Locke (1632 d. C.), empirista, afirmou que, ao nascer, a alma humana era uma “tábula rasa”, uma folha de papel em branco; dessa maneira, o conhecimento viria com a vivência, da experiência ou das operações internas da própria mente e não das deduções ou especulações, podendo ser esse conhecimento dividido em sensação e reflexão (método empírico). Essa mente teria como conteúdo as relações que ela estabeleceria entre as sensações e as reflexões. O conhecimento dava-se, assim, por meio da mente.
Nos anos seguintes, outros filósofos continuaram os estudos sobre a condição humana e depararam-se com os avanços científicos a respeito do funcionamento cerebral. Na década de 1990, a filósofa canadense Patrícia Churchland dedicou-se a traçar uma interface entre a neurociência e a filosofia, salientando a importância de entender a mente humana a partir do cérebro.
Nesse mesmo período, a neurociência começou a transitar com maior densidade no meio científico. Dessa maneira, mostrou-se capaz de explicar a dependência presente entre os processos de pensamento e o funcionamento cerebral, comprovando que somos formados pela influência do meio e por fatores genéticos.
A Influência do meio no arranjo cerebral
Ao nascer, em condições consideradas de normalidade, o sistema nervoso central humano apresenta uma formação voltada à interação com o meio externo em que esse sistema se insere. Dessa maneira, inicia-se um processo de aprendizagem em que o indivíduo, ao observar os acontecimentos externos e ser estimulado por informações diversas, começa a formar seu conectoma neural, ou, dito de outro modo, seus impulsos nervosos, combinados com determinadas substâncias químicas produzidas pelo organismo, as quais movimentam uma rede de neurônios que se conectam, permitindo que as diversas informações sejam decodificadas e direcionadas para regiões e funções específicas. A cada novo estímulo informativo essa rede neural amplia-se e conhece mais o meio onde vive, o que permite formas de adaptação.
Entretanto, o funcionamento cerebral não acontece de forma igual para todos. Apesar de o mecanismo de aprendizagem funcionar basicamente com a mesma sequência, cada indivíduo percebe a realidade de uma forma única. Quando um estímulo chega ao sistema nervoso central humano, inicia-se uma procura imediata de informações apreendidas anteriormente que possam se relacionar com a informação nova e atribuir-lhe um sentido, formando um circuito novo ou ampliado por informações recentes. Há uma necessidade cerebral constante em estabelecer relações com o que vemos, ouvimos, lemos, observamos ou, simplesmente, vivenciamos, na tentativa de identificarmos se a aprendizagem nova poderá ser útil ou não para a sobrevivência na Terra.
Ocorre que, nem sempre, nossa sensibilidade aliada à percepção é capaz de captar todos os estímulos externos pertinentes a um determinado fenômeno, pois acabamos por captar os que se mostram mais relevantes individualmente, o que faz com que tenhamos uma percepção falha da realidade. Cada indivíduo tem a sua percepção de um fenômeno; mesmo que uma multidão veja o mesmo acontecimento, ele será registrado pelo cérebro de cada um de acordo com suas memórias, suas vivências anteriores e seu histórico de vida.
Dentro desse mecanismo de percepção de mundo, há os comportamentos intencionais e inconscientes, que ocorrem sem que a consciência tenha tempo de atuação e de direcionamento. No entanto, há também os comportamentos intencionais e conscientes, os quais, na maior parte do tempo, convivem muito bem, cada um ao seu tempo e espaço.
O meio onde o indivíduo vive exerce grande influência em sua percepção de mundo e consequentemente em seu comportamento diante da sociedade. As experiencias vividas, as memórias consolidadas, o nível de conhecimento adquirido e as emoções percebidas ou não, resultarão em um indivíduo único, que terá a tecnologia ao seu dispor para uma interação social também única.
Como se não bastasse essa complexidade mental, há uma formação genética singular a cada pessoa. Os genes, o ambiente e a evolução cerebral, podem prejudicar ou auxiliar o desenvolvimento humano e sua interação com a tecnologia.
A culpa está nos genes?
Os genes são segmentos que fornecem às células do corpo instruções de como formar novos organismos e são transmitidas de geração em geração, comunicando as instruções aos descendentes. Aproximadamente metade dos genes humanos estão ativos no cérebro. Em geral, o processo de replicação dos genes ocorre de forma equilibrada, mas, quando há uma anomalia no processo, surge alguma mutação que pode resultar em mau funcionamento, comprometendo alguma estrutura funcional celular e ocasionando distúrbios. No caso do cérebro, esse descompasso pode comprometer algumas conexões neurais e regiões, sendo capaz de afetar a funcionalidade cerebral e, consequentemente, o comportamento.
Entre os transtornos psiquiátricos que resultam em comportamentos, por vezes, agressivos ou de desordens morais, estão o transtorno bipolar, a depressão, a esquizofrenia e a demência frontotemporal. Alguns são mais perceptíveis ao olhar humano; já outros, como a esquizofrenia, são mais difíceis de identificar até que ocorra algum surto, com consequências, por vezes, desastrosas. Há, ainda, um distúrbio emocional muito recorrente no meio criminal – a psicopatia. Psicopatas, na maioria dos casos, apresentam comportamento antissocial e ausência de empatia com outras pessoas, agindo deliberadamente para parecerem normais aos olhos dos outros.
Esses cérebros transtornados, se combinados com ambientes sociais hostis, de poucos ou inadequados estímulos cognitivos, e expostos a exemplos imorais, certamente terão seu desenvolvimento cerebral já prejudicado, agravado.
Enfim, o avanço tecnológico contribuiu para a evolução do humano?
É fato que a tecnologia esteve e ainda está presente nas diversas guerras pelo mundo, nos novos diagnósticos médicos, no trabalho dos Hackers, na interação via redes sociais, nos cursos de formação e especialização online, na comunicação imediata com o mundo, na inteligência artificial que agiliza o dia a dia, enfim, para o bem e para o mal, a escolha sempre foi do homem. Esse homem, dotado de cérebro, corpo e conhecimento, é movido pelo meio em que vive, fatores genéticos e seus anseios.
Se considerarmos fatores como o aumento da expectativa de vida e as descobertas das ciências, podemos afirmar, de forma rápida, que a tecnologia contribuiu para a evolução humana, porém o homem ainda luta e lutará cada vez mais com sua dicotomia humana. O conhecimento, a aprendizagem constante, é capaz de ampliar o entendimento de mundo e moldar o comportamento humano, impedindo ações impensadas e possibilitando o seu planejamento. Já a tecnologia, por si só, não é capaz de evoluir o homem, ela é apenas um meio para se chegar a um ponto.
Em um ambiente agressivo, onde as necessidades básicas são negadas e a sobrevivência passa a tomar conta dos pensamentos humanos, o homem tende a responder com seu cérebro primitivo, direcionando esforços apenas para sua sobrevivência. A tecnologia aqui pode representar certo perigo para a humanidade, principalmente se estiver nas mãos de poucos privilegiados.
Por fim, é importante ressaltar que a adoção de políticas públicas que considere a relação do homem com seu meio, com sua dicotomia humana e com a necessidade de evolução, é condição fundamental para uma sobrevivência digna na terra e da terra. Nesse contexto, muito além de ensinar a ler e escrever, a Educação, enquanto processo legal, moral, social e produtor de conhecimento, passa a ter o dever de ensinar o homem a conviver com seu fator humano, afinal, ainda é no interior da escola que aprendemos a conviver em sociedade.
[1] LONGO, W. P. Tecnologia e soberania nacional. São Paulo: Ed. Nobel, 1984
[2] JAPIASSÚ H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.