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Child free: sobre como o mercado legitima a intolerância

Child free: sobre como o mercado legitima a intolerância

Hora do almoço, você na rua com seus filhos, escolhe o primeiro restaurante que aparece. Na porta, uma placa com os dizeres: “proibida a entrada de crianças”.

O chamado child free, tendência de mercado importada da Europa, determina a proibição da entrada de crianças em estabelecimentos comerciais, mormente hotéis e restaurantes. Originária do desejo de convivência entre casais sem filhos, a ideia de espaços só para adultos foi apropriada pelo mercado e se converteu em uma lucrativa mercadoria, que legitima um gosto supostamente natural pela apartação de crianças.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu demonstra que, em matéria de cultura legítima, não há gostos naturais, mas sim produtos sociais. Do ponto de vista sociológico, não gostar de crianças – esse contrassenso societário – não é uma propriedade inerente ao indivíduo, mas a resultante de um conjunto de forças da sociedade e também do mercado dirigidas a esse propósito.

Como mercadoria, o child free cria seu mercado consumidor a partir de uma construção simbólica que antagoniza criança e bem-estar adulto: de um lado, a imagem preconceituosa das crianças como seres intoleráveis; de outro, os diversos signos do deleite: romantismo, tranquilidade, exclusividade etc. A síntese dessa dialética é o convencimento de que crianças são sim inconvenientes e é um direito individual do consumidor optar por espaços livres desse incômodo.

Surge nesse ponto uma disputa política entre o consumidor e o cidadão. Quem pode mais, aquele que, em tese, é portador de direitos, ou aquele que, de fato, tem o poder de compra? Se o consumidor tem o direito à escolha, o cidadão tem o direito ao respeito. O que se questiona aqui não é o tão proclamado direito ao sossego – ícone da tendência child free –, mas os mecanismos simbólicos que erguem esse direito sobre uma base de significação preconceituosa, estigmatizante e discriminatória do cidadão chamado criança. Querer sossego é direito de todos, ser intolerante com todo um estrato social em nome desse sossego é que não.

O que pode representar do ponto de vista societário a tolerância social com a intolerância? Tolerar a intolerância é um caminho viável para a manutenção do tecido social nas sociedades complexas? E quando o mercado encontrar um jeito de dizer que pessoas com deficiência, negros ou estrangeiros não combinam com este ou aquele ambiente, com este ou aquele produto e é direito de cada consumidor segregar esta ou aquela categoria social, este ou aquele cidadão? Se a criança é tão cidadã e portadora de direitos quanto qualquer adulto – e é, está na Constituição –, em nome de quê se admite a intolerância e a discriminação contra ela? Em nome do mercado, esse deus etéreo? Em nome do consumidor, esse pequeno déspota?

No espaço público ou nos espaços de uso coletivo, a inconveniência é um risco, não há muito o que fazer. O isolamento seria uma solução. Se não quero ser incomodado, permaneço no meu mundo, isolado, assim tenho a segurança de não cruzar com tipos que me desagradam.

Mas quando a intolerância é legitimada pelo mercado, como no caso do child free, o isolamento deixa de ser uma opção: consumir é imperativo. Há anúncios nos meios de comunicação, em blogs de viagem, nas redes sociais convidando ao romantismo, ao sossego, à exclusividade e afirmando que nada disso pode existir na presença de crianças. Como ficar de fora? O consumidor do child free não tem culpa, ninguém lhe aponta o dedo, afinal, crianças não são mesmo umas diabinhas insuportáveis? Como culpar quem quer tê-las longe por um final de semana ou um jantarzinho a dois? Que mal há, afinal, em uma placa de “proibida a entrada de crianças”?

O mal que há nesse tipo de negócio é um mal societário. É o mal de se afastar as crianças do convívio e do aprendizado sociais e lhes ensinar que quem pode pagar tem o direito de escolher com quem quer conviver, quando e onde, não importando os custos éticos e sociais dessa escolha. É o mal de se chancelar a intolerância, o preconceito, a discriminação. É o mal de se sobrepor o consumidor ao cidadão.

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Uma resposta

  1. Excelente reflexão. Excelente. Fico a pensar que isso remete à Idade Média, onde as crianças não eram consideradas como gente. Ah, e não sei qual a diferença entre as placas: “proibido a crianças” e “proibido a animais”

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