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Brasil: já nasceu essa nação?

Brasil: já nasceu essa nação?

Na busca de um modelo analítico para entender o fenômeno Bolsonarista vivido nos últimos anos no Brasil, é apresentada aqui uma questão: nós brasileiros temos uma identidade nacional ou foi sempre só uma intenção?

Ao nos depararmos com as manifestações realizadas e as matérias vinculadas a partir da candidatura de Jair Messias Bolsonaro para Presidente da República, em 2018, com posturas tão controversas, e diante de atitudes de apoio tão surpreendentes e enfáticos de seus seguidores, uma situação analítica se apresentou: O que pensa o cidadão brasileiro? Qual a sua visão de mundo? Pertencemos todos a uma mesma nação?

Uma certeza mexeu com nossas estruturas sociais. Com o desenrolar das manifestações populares no Brasil, principalmente desde a ascensão da figura política polêmica de Jair Bolosonaro, identificamos uma legião de seguidores, que não era um aglomerado de lunáticos desconhecidos, para a surpresa de todos, mas sim pessoas queridas, próximas ao nosso convívio, vizinhos, amigos, pais, filhos, irmãos e colegas de trabalho.

Os teóricos da área afirmam que a identidade nacional é uma criação moderna, tendo seu início no séc. XVIII e desenvolvimento ao longo do séc. XIX. Podemos entender que a identidade brasileira foi decorrente de um processo de construção histórica, como em diversos outros países. Apesar de se ter iniciado após a Independência, em 1822, o processo de constituição da identidade nacional ganhou um impulso maior após a década de 1930, quando Getúlio Vargas chegou ao poder.

Porém, temos nesse processo de construção identidária diversos tropeços.

Anne-Marie Thiesse (1999: 14) afirma que a nação nasce de um postulado e de uma invenção e condensa-se numa alma nacional, que deve ser elaborada. Uma nação deve apresentar um conjunto de elementos simbólicos e materiais: uma história, seus heróis, modelos das virtudes nacionais, uma língua, monumentos culturais, um folclore, lugares importantes cheios de simbologia e uma paisagem diferenciada, representações oficiais, como hino, bandeira, escudo, costumes, especialidades culinárias, dentre outros elementos.

É posto que o Brasil é considerado uma das primeiras experiências bem-sucedidas de criar uma nação fora da Europa. No entanto, a constituição da nação brasileira como independente não foi exatamente um processo autônomo, já que foi proclamada por um príncipe português. Não houve, portanto, uma ruptura completa e legítima com a antiga metrópole. O trabalho de construção da nacionalidade começa, então, com a nacionalização do monarca. Aliás, podemos afirmar que o grande problema na construção de uma alma nacional brasileira foram as rupturas. Sim, nós povo brasileiro lutamos pela independência do Brasil de Portugal, pela proclamação da República, pela libertação dos escravos, pela igualdade entre homens e mulheres, e por tantos outros direitos conquistados por lei, mas estes processos foram quase sempre mediados, conduzidos, também, por quem mais se beneficiava da situação antes da ruptura, para continuar se beneficiando depois dela. Não tirando o mérito do povo brasileiro em seus processos de mudanças e conquistas, certamente também fomos manipulados em diversas ocasiões.

Segundo o professor da USP, José Luiz Fiorin[i], a identidade nacional é construída de forma dialógica, a partir de uma autodescrição da cultura. A identidade nacional é um discurso, citando Bakthin (1970). Esta autodescrição pode ter princípios de exclusão e o da participação. Consequentemente se caracterizam como culturas da mistura ou da triagem, sendo que a nossa cultura é considerada como cultura da mistura.

Descobrimos com este nebuloso período histórico da última década, que nós brasileiros somos racistas, sexistas, violentos, homofóbicos e fascistas. Direitos humanos não é para todo mundo. Não entendemos o conceito do que é patriotismo, não temos valores cristãos internalizados, nem valorizamos a instituição família, a não ser no discurso, e não gostamos de pobres, pretos ou de algum tipo de proteção concedida aos povos nativos.

Sem a pretensão de teorizar a respeito, e considerando a devida superficialidade da análise, a alma nacional brasileira, como a entendíamos até então, se apresenta utópica. Gostávamos tanto de pensar que éramos um povo miscigenado tolerante, com sólidos valores morais, que quase acreditamos nisso. Um povo poético, generoso, respeitoso, que mora em um país paradisíaco. O mito da origem de nosso país opera com a união da natureza com a cultura, ou seja, dos valores americanos com os europeus. O Brasil seria, assim, a síntese do velho e do novo mundo, construída depois da destruição dos símbolos colonialistas e das intempéries naturais. Os elementos lusitanos permanecem, mas modificados de forma harmônica pelos valores da natureza americana. Acreditamos piamente em “O Guarani”, de José de Alencar[ii].

Na primeira metade do século XX, há outro movimento de construção identidária importantíssimo, que se assenta também sobre a mistura, pois considera a mestiçagem como o jeito de ser brasileiro. Inventamos que o que distingue o Brasil é a assimilação, com a consequente modificação, do que é significativo e importante das outras culturas. Mentimos para nós mesmos e para as nossas crianças neste processo de autodescrição da cultura.

Como vimos, uma nação é feita de um complexo legado de lembranças, que é aceito por todos, uma herança simbólica e material. Assim, pertencer a uma nação é ser um dos herdeiros desse patrimônio comum, reconhecê-lo, reverenciá-lo (THIESSE, 1999).

A alma nacional brasileira foi construída a partir de uma terra invadida, de violência, de gente roubada de outros lugares, de desumanização, vide a escravidão[iii]. Aprendia-se no dia a dia, e no lombo, quem mandava e quem obedecia, quem valia alguma coisa e quem não valia nada. Quem eram os superiores, quem eram os inferiores. Isso século após século. O nosso processo de construção identidário se deu assim. Jamais, a partir de rupturas mal engendradas, daríamos todos as mãos e viveríamos como iguais.

Agora não dá mais para fingir e continuar a vida. As máscaras caíram, e, na verdade, nem reconhecemos mais as pessoas que estavam por trás delas, quanto mais a existência de uma alma coletiva nacional como sempre nos foi apresentada.

Bibliografia

ALENCAR, José de. O guarani. 19. ed. São Paulo: Ática, 1995.

BAKHTIN, Mikhail. L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance. Paris: Gallimard, 1970.

FIORIN, José Luiz. https://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/download/3002/1933%3E. Acessado em 20/01/2024.

THIESSE. Anne-Marie. La création des identités nationales. Europe XVIII–XX siècle. Paris: Editions du Seuil, 1999.


[i] https://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/download/3002/1933%3E

[ii] O guarani é uma obra do escritor cearense José de Alencar. De forma idealizada, esse romance conta a história de amor entre Ceci, filha de um colonizador, e Peri, indígena brasileiro. Com esse relacionamento inter-racial, o narrador cria a ideia de que o povo brasileiro é fruto do amor e da harmonia entre portugueses e indígenas.

[iii] Fica aqui o registro de que a crítica envolve o tipo de colonização vivido pelo Brasil, e não a um determinado povo específico, no caso o português, mesmo porque sofremos a invasão de outros países.


Imagem retirada do site: https://br.freepik.com/fotos-premium/uma-bandeira-verde-e-amarela-com-a-palavra-brasil

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Uma resposta

  1. A excelente análise da professora Giubertti nos põe diante do dilema mais excruciante da nossa caminhada enquanto nação. Esse dos dois Brasís, uma vez que o ato de terror de revelar uma ‘classe média’ branca, medianamente instruída, com razoável poder aquisitivo, que sempre emperrou o elevador social, que é “racista, sexista, violenta, homofóbica e fascista, como resposta – o ato de terror – ao Brasil que busca igualdade, ao Brasil dos excluídos que Lula trouxe para a sala de estar, retirando-os do quintal traseiro, com passagem pela cozinha e o direito a estudar e ter poltrona na sala, opinião na fala, e dignidade na existência. Para lá do óbvio que é reconhecermos o Direitos de todos, e que este dilema é um ato de egoísmo e miséria, podridão e desgraça, está a necessária compreensão que esse processo é imparável.

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