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Brasil e sua conveniência moral bélica: “armai-vos uns aos outros…”

Brasil e sua conveniência moral bélica: “armai-vos uns aos outros…”

Desde criança, nunca gostei de armas. Raramente ganhava um simulacro de presente, e quando ganhava, quebrava na hora. Lembro de uma metralhadora que ganhei aos seis anos, daquelas que simulam o som das rajadas. Quebrei no mesmo dia e joguei as duas partes num poço. Não sei as razões, simplesmente não me apeteciam.

Você pode dizer que cresci numa comunidade pacífica, mas mão. Periferia de Taubaté/São Paulo nos anos 1980. Tanto que não poucas vezes a rua acordava ao som de tiros. Uma vez meu pai teve que voltar para casa, estava esperando o ônibus da empresa, senão sobraria pra ele.

Pois bem. A gente cresce e começa a ter mais ainda contato com a realidade. Servi ao Exército em 1997/1998. Odiei aquilo. Do primeiro ao último dia, dei todo tipo de trabalho que você possa imaginar. Você pode pensar: “não gosta é de ordem, não é? Não gosta de hierarquia!”. Até gosto. Só não gosto de nada que rouba o senso crítico, a capacidade de reflexão. Flexão sem reflexão para mim não fazia sentido. Outro trocadilho: eu só fazia posição de sentido, sem sentido.

Lá tive meu primeiro contato com armas. E das pesadas. Para-Fal 762, 556, tidas armas de guerra. Há um ritual dentro da caserna em que você é obrigado a “casar” com seu fuzil. Levá-lo para onde for. Cansei de dormir com ele, dentro do saco de dormir (desmuniciado, é claro), para não ser “roubado” por cabos e sargentos. Se eu ficasse sem, detenção era o melhor que aconteceria.

Desmontava e montava fuzil no escuro. A mola do obturador de cilindro de gases saltava no meio do mato, e você tinha que procurar aos barros: – Você é louco? Quer morrer na missão, guerreiro?

Não eram poucos os relatos de soldados que se feriam pelo mau manuseio das armas. Tiros nos pés, tijolos quentes (quando a munição não deflagra, mas fica na arma). Haviam também os tristes relatos dos suicídios pela pressão psicológica exercida ali dentro. No meu ano teve o caso de um soldado que se matou com um tiro de fuzil no queixo, enquanto tirava plantão. Motivo: sua noiva havia terminado o relacionamento. Somatizou.

Depois que saí daquele inferno, não me restou muita alternativa senão o quase previsível caminho da segurança privada. Precisava ganhar dinheiro e quem sai do Exército já chega em vantagem nesse mercado. Fiz então o curso de Vigilante, e lá estava eu de novo com armas. Dentro desse curso haviam outros mais específicos, como manuseio de tonfa e manutenção de armas. Fiz os dois, e foi onde entendi minha aversão por armas que vinha desde a infância: o perigo que qualquer pessoa corre por culpa (negligência, imprudência ou imperícia) no manuseio e manutenção de armas. Fiz manutenção na Taurus, Imbel e Pump Action (a calibre 12, como é conhecida).

Os números são alarmantes: para profissionais e amadores, varia um pouco. Mas os acidentes são mais comuns do que pensamos. Em 2019, segundo apurou o Jornal Folha de São Paulo, a cada três dias uma criança é internada no Brasil por acidentes com armas de fogo.

Embora eu não queira entrar em aspectos técnicos do manuseio de armas, quero aqui alertar que eu não tenho 0,000015 de gabarito para defender profundamente aquela ou essa posição, mas já vi o suficiente para trazer à reflexão que uma arma dentro de casa nunca foi sinônimo de segurança. Explico as razões:

Bandidos vivem numa situação de pronto-emprego, tal qual policiais. Agem sob estresse, alertas. O “cidadão de bem” que adquire uma arma para sua defesa, por mais treinamento que tenha, nunca agirá com a mesma destreza que o ladrão porque o crime é o ‘meio de vida dele”. Ele manuseia armas correndo, saltando muros, dirigindo em alta velocidade. Você, no máximo, vai saber como municiar e carregar uma arma para atirar numa silhueta imóvel de papelão.

Sobre manutenção de armas, o ladrão sabe manusear, tem tempo de sobra para isso. Os recrutados para o tráfico são até treinados. Você só vai passar um desengripante e um grafite a cada mês e olhe lá.

Vou exemplificar com um excerto tirado do site Reclame Aqui, sobre uma das peças que mais dá defeito na Taurus (E estamos falando de um caso de alguém com certa familiaridade com armas!). Veja a reclamação abaixo:

Fonte: https://www.reclameaqui.com.br/taurus-armas/revolver-rt-608-com-defeito_y_DLeoDaOwXbdTHC/

O que quero provocar em você com tudo isso? Que qualquer que seja seu preparo, você nunca chegará ao desempenho de um bandido. Não fosse assim policial não morria em ação.

Você dificilmente terá a destreza atirando ocasionalmente contra quem faz do tiro sua sobrevivência.

“Ah, mas o bandido pensará duas vezes em atirar contra alguém por imaginar que esse alguém está armado!”. Sério? E por que atiram em policiais? Quer mesmo colocar você e sua família nessa roleta-russa?

A vida não é a saga de Charles Bronson, meu caro e minha cara!

E não se discute nem se propõe soluções para a segurança pública enxugando gelo. Ou tratamos as causas com seriedade e desapaixonados ideologicamente, ou vamos eternamente dar esse tiro no pé.

E o Brasil justo e fraterno que queremos sairá pela culatra.

 

 

Crédito na imagem: Memórias dum circo, 1991, René Bértholo / Lisboa

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