A pintura, enquanto exercício plástico de uma prática de representação, fundamenta-se no artifício de uma imagem-simulacro, que falsifica o real e projeta uma nova realidade no espectador. A continuidade do exercício da prática da pintura decorre da progressiva emancipação da intencionalidade do sujeito-autor e da desconstrução do lugar que a pintura ocupa, no processo de produção, exposição, validação e na interpretação fundada na construção mental do espectador.
A perda da autoridade e da “aura”, subjacente ao objeto artístico, possibilitou a formação de um novo poder, aparentemente mais democrático, mas, por antítese, assente numa prática discursiva alegórica, preterindo a inteligibilidade da história, em favor da apropriação de imagens e de linguagens plásticas formadoras de poder.
A lógica panfletária apresentada no trabalho “Lancem ideias àqueles que criticam [a Ciência] ou a Literacia na Era da Pós-Verdade” (Goes, 2023) pretende convocar o espectador à discussão sobre o questionamento da clarividência científica e sobre a formação de uma ideia de pós-verdade, determinada pela proliferação de informação/desinformação, pelo mediatismo/imediatismo e pela apropriação destas narrativas por parte dos populismos ideológicos, neototalitários.
Neste objeto-pintura, especificamente desenvolvido para a exposição “Literacia faz bem à Saúde” – projeto artístico de cooperação entre a Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde (SPLS) e o Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC) – que será apresentado ao público no próximo mês de março (2023) na Galeria PeP do MNAC, no âmbito do projeto nacional [Portugal entre Patrimónios] – pretende-se reconstituir um ambiente clínico-laboratorial, com alusões às antigas farmácias e sanatórios e proporcionar ao espectador uma perspetiva histórica do avanço da ciência e da desconstrução dos mitos, nomeadamente, aqueles afetos à religiosidade popular.
Para o simulacro deste espaço/ambiente, onde prolifera representações do mito, faz-se uso da apropriação e assemblagem de objetos do quotidiano, a colagem de recortes da imprensa italiana e portuguesa dos inícios do século XX até à contemporaneidade e a representação iconográfica da morte e a pintura sobre tela e madeira são alguns dos meios e suportes que materializam o objeto-pintura.
Expõem-se e relacionam-se os conceitos de relicário, memorabilia, cabinets de curiosités, memória e pós-memória. A fragmentação do pensamento e das imagens (as crenças, os remédios e “mezinhas”, a automedicação, as drogas, o álcool), a representação do mito e da religiosidade popular (arcanjo São Rafael), o animalesco, signos da morte e do mal (o corvo, o abutre, a coruja), as “fake news”, a sátira, o burlesco, a apologia à ignorância (representadas pelo asno), constituem determinismos à razão e à ciência e perpetuam os obstáculos à decisão informada e à literacia em saúde.
Em tempos de novos mitos, pós-verdades, metanarrativas e metalinguagens, a (des)legitimação da prática autoral, a não sistematização dos processos de validação dos objectos pictóricos, o criticismo histórico e a efemeridade da arte, inerentes às práticas pós-duchampianas, tornaram-se inevitáveis para os artistas, público e para as instituições museológicas. A incomensurabilidade da prática artística decorre, talvez de forma inevitável, da mitificação da sociedade contemporânea, do próprio processo interpretativo, do trabalho de literacia e da aproximação ou confronto com o real.