II Conferência Internacional de Bioética – Funchal. 6 de fevereiro 2022
por Carlos Costa Gomes (1)
“Na sociedade atual parece não haver lugar para a construção de comunidades, mas sim de pluralidades de indivíduos com o mesmo fim em comum, mas sem um espírito comum.”
1. ESTA PALAVRA ÉTICA.
Devo começar por esclarecer em que sentido, ou melhor, em que sentidos a palavra ética é usada neste contexto. É bem conhecida a raiz grega da palavra ética e o duplo sentido que lhe é atribuído pelos especialistas (2) da escrita clássica grega. Mas para o objetivo deste encontro esqueço, intencionalmente, a vinculação da palavra a um étimo grego e proponho, na leitura de Daniel Serrão, um entendimento moderno referido à atividade racional/cerebral como capacidade reflexiva da inteligência humana avaliar o bem e o mal, após ponderação de valores, já que no entendimento do autor citado, e no meu entendimento, “só o homem é um animal ético”(3).
2. O ENTENDIMENTO DO SENTIDO DA PALAVRA ÉTICA. UMA PERSPETIVA NEUROBIOLÓGICA
Os seres humanos, como todos os seres vivos, estão imersos no mundo natural. A vida exprime-se e manifesta-se na relação permanente entre estruturas organizadas para a perceção do próprio mundo natural. Esta relação é tão radical que Lovelock (4) afirma que a crusta terrestre é, em certo sentido, viva porque nela e por ela emergem os seres que chamamos vivos, a partir da célula primordial ou proto célula. Esta é uma estrutura, quimicamente redutível a átomos e moléculas com as suas reações mútuas, que denominamos de estrutura viva quando, dessas mútuas reações emergiram a capacidade da autorreplicação da molécula de ADN (5).
Portanto, a essência da vida é relação. Primeiro, a simples relação in/out na célula primordial e no cume da evolução a relação cérebro humano e o mundo exterior. Esta relação é assegurada pelos órgãos dos sentidos que incessantemente levam ao cérebro o mundo exterior – que é visto, ouvido, tocado, olfatado ou saboreado. E o cérebro, constantemente assaltado por estes estímulos, está organizado para receber, para os interpretar e para memorizar essa interpretação.
Quando uma pessoa vê, porque as células nervosas da retina foram estimuladas pela energia fotónica, os neurónios talâmicos, supratalâmicos e corticais fornecem uma imagem do objeto exterior visto pela pessoa – é uma perceção visual.
A consciência percetiva ou valorativa vai depois avaliar a qualidade desta imagem em três níveis.
O primeiro nível é o da avaliação dicotómica – gosto/não gosto, a que segundo Daniel Serrão, chama estética. Então sobre a imagem percebida, a pessoa vai colocar a marca estética-positiva ou negativa.
O segundo nível é também, o de uma avaliação dicotómica: é o objeto/imagem visto como bom ou mau para quem observa. É realizada uma qualificação ética da imagem do objeto visto.
Esta atividade cerebral é exercida pela associação das áreas e estruturas cerebrais e ocorre em poucos milésimos de segundos. E a imagem do objeto com a sua marca estética e ética é arquivada na memória, principalmente na memória dia de trabalho… a este arquivo podemos chamar o quarto ou o armazém pessoal no qual guardamos os valores estéticos e éticos.
Porquê, chamamos quarto ou armazém?
Porque é neste local – simbólico – que vai ocorrer o exercício do terceiro nível – o córtex têmporo -parietal e frontal – vai buscar os materiais para a avaliação racional pelo exercício de uma nova função cerebral que é a inteligência reflexiva; esta função mental, exclusivamente humana, compõe a imagem global do objeto visto, representa-o por palavras e usas estas representações para orientar as decisões pessoais.
Em resumo, como já referido, a ética, na perspetiva de Daniel Serrão, é a capacidade ou categoria da inteligência humana que torna possível que a pessoa tome decisões após ponderações de valores – estético, éticos e racionais. Estamos no plano e no campo da ética pessoal, da ética individual.
2. O OUTRO SENTIDO DA ÉTICA. A ÉTICA SOCIAL
Na sociedade ou sociedades, cedo se reconheceu que havia comportamentos pessoais que teriam de ser aceites por todos os membros para garantia da paz e da coesão social. Estes comportamentos e atitudes são representados por palavras às quais se chamam valores: a honestidade, a solidariedade, a decência, a dignidade, a verdade, a justiça, a liberdade, a autonomia… O conjunto destes valores declarados sociais constitui a moralidade pública ou a eticidade social.
Como membros da sociedade e como cidadão, cada pessoa vai ter que harmonizar os seus valores individuais e pessoas, que resultam da sua história de vida e da sua biografia pessoal e cognitiva, com os valores sociais do grupo humano ao qual pertence. Quando uma pessoa não se sente confortável no trabalho da harmonização referida ou se exclui da sociedade ou manifesta a sua indignação ética apresentando os seus valores individuais como superiores aos valores sociais. E pode e deve usar os meios legítimos para que os seus valores individuais sejam aceites pela sociedade como valores sociais. Estas pessoas, por vezes, triunfam.
Com o evoluir das sociedades para organizações cada vez mais complexas, alguns dos valores sociais, oferecidos aos cidadãos para que, voluntariamente, os cumprissem foram considerados essenciais para a garantia da sobrevivência de uma sociedade coesa e em paz e por isso tornaram-se obrigatórios. Quando as normas da moralidade pública se transformam em leis de cumprimento obrigatório a sociedade constituída por cidadãos livres, passou a ser um Estado, juridicamente organizado, ou seja, um Estado de Direito.
No Estado de Direito o cidadão aliena uma parte da sua liberdade porque tem que obedecer às Leis, sejam elas criadas pelos representantes que escolheram ou pelo Governo no qual delegaram o poder de executarem as leis e de protegerem os cidadãos. Administrando a Justiça.
3. A JUSTIÇA COMO EQUIDADE
A justiça de que vos vou falar não é da justiça formal dos tribunais. É da justiça como equidade, que é um valor ético ao nível da liberdade e do bem-estar. Do valor da justiça deduzimos o princípio da Equidade que pode enunciar-se com as palavras da revolução francesa: todos os homens nascem livres e iguais, em direitos e em deveres. Deste princípio da equidade (ou igualdade) pode e deve deduzir-se a norma ética: ninguém pode ser discriminado por causa da sua situação económica, nível social e cultural, nem de qualidade inata ou adquirida.
Esta norma de ética individual transforma-se numa norma de ética social – quando o tratamento igual com os iguais – tem sido modificado pela ética, ou eticidade social completando-a deste modo – tratamento desigual aos desiguais.
Podemos, em princípio, afirmar que todos os seres humanos são iguais, ou seja, todos são igualmente humanos porque todos têm um genoma humano, mas também é certo que a informação genómica e a ação dos fatores extra-genómicos, biológicos e culturais, vão criar a profunda diversidade humana, bem patente em toda sociedade.
Por esta razão, do ponto de vista ético, não constitui ofensa ao valor da justiça nem ao princípio da equidade, criar normas de discriminação positiva, dando mais aos quem mais necessitam por serem vulneráveis.
É o princípio ético da vulnerabilidade que apela ao valor da solidariedade em que se situam as normas de descriminação positiva. Por exemplo: um invisual fica vulnerável para se deslocar na cidade do Funchal, mas tem direito a deslocar-se; a discriminação positiva consiste em eliminar barreiras arquitetónicas; regularizar os passeios, criar avisos sonoros para facilitar a travessia das ruas… a idade avançada deve merecer uma descriminação positiva; não criar normas, necessárias, ao bem-estar destes cidadãos não é aplicar o valor da justiça nem o princípio da equidade, mas sim gerar iniquidades que são eticamente censuráveis.
Para realizar o valor da equidade e cumprir o princípio da solidariedade para com os mais vulneráveis, o Estado organiza, sob sua responsabilidade sistema de segurança social e para pagar os custos, cria impostos cobrados aos cidadãos.
É uma opção política nas sociedades democráticas – a fiscalidade realiza a justiça distributiva. Os custos da prestação social – entendida como um bem coletivo – devem ser pagos pelos membros da sociedade que produzem riqueza…
4. AS INIQUIDADES SOCIAIS MAIS COMUNS
A primeira é considerar que toda pessoa com mais de 65 anos é idoso ou um velho que deve ser tratado com uma postura paternalista. É um tipo de descriminação que não se pode chamar de descriminação positiva, pois, é claramente negativa. Isto pressupõe retirar o direito ao exercício do respeito pela sua autonomia pessoal, como princípio ético, e do consentimento informado como norma das relações sociais.
A iniquidade faz com que se perca a justiça como valor e a equidade como princípio ético fundamental para estabelecer a igualdade. Restaurar a equidade leva à justiça social e à concretização da ética social.
A luta pela equidade é da responsabilidade e dever dos que tutelam o Estado, mas também das autarquias porque estão mais próximas para sinalizar casos de iniquidades. É, de um modo especial e muito concreto, que cabe às autarquias locais (Câmaras e Juntas de Freguesias), pela proximidade, a criatividade mostrar ao Governo que é um absurdo ético as iniquidades sociais e que tem que definir normas específicas que vão de encontro à equidade horizontal e à equidade vertical – pela qual se reconhece a identidade social – tratar os iguais como iguais e o desigual como desigual. Desta forma se reconhece quem são os vulneráveis…
5. PARA VENCER AS INIQUIDADES A EQUIDADE
Na sociedade atual constrói-se o futuro. O nosso olhar deve ser o de estar atento aos sinais. Rachel Caspari afirma que foi o aumento da duração da vida dos seres humanos que, ao permitir a utilização da sabedoria dos avós pelos jovens, originou o fantástico crescimento cultural, social e tecnológico dos últimos 10.000 anos. Este crescimento garantiu a sobrevivência da espécie humana em todos os continentes.
Estamos hoje num momento temporal com umas idênticas caraterísticas. Pela segunda vez a inteligência, a experiência e a sabedoria dos avós depositada na rede informática global entrará em debate de aprendizagem com a inteligência dos jovens e estes desenvolverem novas estratégias para uma ética social global e responsavelmente sustentável.
É ética social, e a ética em geral, não parte de considerações teóricas, mas de “necessidade inteiramente práticas da vida” (Hans kung) que é necessário observar a bem a sociedade e do bem-estar comum e do convívio mútuo.
É com base na ética social que se fundamenta o Direito, enunciando valores e princípios consensuais que permitem o viver em sociedade e em democracia. Mas, não raras vezes o Direito e a consciência ética divergem entre si. Este facto vale, precisamente para a política, quando nela e com ela não se realiza o fim que a própria política define.
A política, na sua missão, é o de criar as condições para que todos tenham o mesmo ponto de partida; a democracia é a arte para que todos possam ter o mesmo ponto de chegada, porque iguais, mas diferentes. A divergência entre o Direito e a ética social é a intenção moral. De que servem as leis se não houver uma intenção moral, um dever de consciência…
A equidade como justiça social realiza-se quando os políticos, e os cidadãos em geral, defenderem com prontidão a paz, a coesão social, o humanismo e olharem para a ética com uma visão ética para dar valor ao direito. Os valores éticos no qual se ancora a equidade devem ser considerados acima de qualquer valor jurídico ou político, mas estes últimos, para cumprir a sua missão, não podem prescindir daqueles.
6. A ÉTICA SOCIAL COMO ÉTICA APLICADA – A BIOÉTICA
A bioética como ética aplicada à vida humana – que se preocupa com as ciências da saúde e com as consequências éticas da biomedicina; a ética profissional, dos negócios, da gestão e da política – como ética social – que aborda as consequências éticas das relações laborais, sociais entre o trabalho e o capital num contexto de globalização económica e tecnocientífica; a ética ambiental que manifesta a preocupação com o ambiente e a ecoesfera como um todo, com as obrigações que temos com as gerações futuras.
É neste plano ético que a bioética faz sentido e tem lugar de destaque, a II Conferência Internacional de Bioética nos temas aqui abordados. Neste sentido, a bioética como ética aplicada à sociedade em geral – ética social – constitui a um elemento fundamental para analisar e resolver conflitos de interesses e valores na sociedade atual.
O núcleo da vida social não reside no sujeito individual, mas sim no sujeito em relação de reconhecimento recíproco com todos os outro sujeitos – isto é, frente ao individualismo abstrato de qualquer liberalismo que queira interpretar o mundo e a sociedade como um conjunto de pessoas atomizadas, guiados pela sua racionalidade maximizadora – o mundo humano é das pessoas que se reconhecem como interlocutores válidos no viver em sociedade.
A bioética – no âmbito da ética social – pretende construir o progresso social e orientá-lo, a partir do esforço dos decisores, para o progresso moral, na medida em que se as sociedades aprendem tudo sobre o que é tecnicamente possível fazer, também aprendem o que moralmente se deve realizar. É nesta aprendizagem de ética social, posta em prática, que radica o autêntico progresso social e económico.
Diria que a bioética, neste capítulo, é uma antevisão do direito do futuro, nas áreas ligadas às intervenções sociais – pessoais, familiares. É a possibilidade de criar uma sociedade civil global, na qual estão presentes valores culturais e políticos no sentido de se afirmar que cada pessoa é uma realidade subjetiva, objetiva e distinta, bem como tem em si o desejo de felicidade e que apela o dever de respeitar o caráter distintivo da sua dignidade.
Na verdade, a bioética, nesta área, não surgiria se a sociedade fosse moralmente justa, estável e una. A questão que a bioética nos coloca é a do viver em conjunto numa humanidade diversa e desigual, fragmentada e em interação social intensa. A bioética como ética social, é um caminho que nos leva a acreditar numa utopia saudável para que todos os seres humanos vivam em paz, para uma economia mais justa e sustentável, para uma ecologia mais sensata e para uma coesão social mais concreta na qual a equidade é o motor da justiça e da eticidade social.
Notas:
(1) Presidente do Centro de Estudos de Bioética; Professor e Investigador UID – ESSNorteCVP; Presidente da Comissão de Ética ESSNorteCVP e da CSSM-H.
(2) No livro Bioética Simples – o leitor encontra um tratamento breve, mas bem informado desta questão hermenêutica, que não é pacífica entre os especialistas.
(3) Serrão, D. (?) Ética e iniquidades.
(4) Lovelock analisa a reação da Terra – viva na metáfora da Gaia, que popularizou as intervenções do perdedor humano com rigorosa argumentação científica.
(5) Robert Shapiro não aceita – e estou de acordo – que a complexa molécula de ADN seja a origem da vida; nem mesmo a de ARN. Para este autor, as redes de pequenas moléculas “emergy driver” são candidatas mais credíveis como iniciadoras da vida.
Imagem de capa: Domínio público, de Mary Pahlke por Pixabay