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A função social da arte: olhar é um ato político (II)

A função social da arte: olhar é um ato político (II)

  1. Introdução:

O presente artigo dá continuidade à reflexão publicada, no passado dia vinte e quatro de março do presente ano, neste órgão – A Pátria – Jornal da Comunidade Científica de Língua Portuguesa (Goes, 2023a). A segunda parte da reflexão, que agora se apresenta, reúne o discurso “Olhar é um ato político” (Goes, 2023b) e uma revisão comentada ao resumo da comunicação “A função social da arte no processo de desenvolvimento humano” (Goes, 2023c), trabalhos apresentados na THINK+2023 International Conference on Digital Economy, Tourism and Human Development.

Do ponto de vista teórico-metodológico, definiu-se como objetivos estabelecer relações  e mensurar os contributos da criatividade e da inovação, através da arte, para enfrentar os  desafios da transição digital, do turismo acessível e da sustentabilidade ambiental, destacando a centralidade da ética nos processos de desenvolvimento humano. Procedeu-se à revisão da literatura científica publicada nas últimas décadas, privilegiando os seguintes autores: Adorno, Backer, Bell, Berger, Bourdieu, Danto, Foucault, Lipovetsky, entre outros.

  1. Resenhas:

2.1 “Olhar é um ato político”

Por ocasião do dia internacional pela “Zero Discriminação”, instituído pela organização das Nações Unidas – UNAIDS, o discurso proferido na sessão de abertura da THINK+International Conference on Digital Economy, Tourism and Human Development (Goes, 2023b) vem convocar à reflexão sobre a importância da eliminação de quaisquer disposições discriminatórias para o bem-estar individual e coletivo (UNAIDS, 2021), nomeadamente, nos contextos educativos e culturais.

Em concordância com a “Agenda 2030” das Nações Unidas, o acesso à tecnologia digital, a literacia e acesso aos cuidados de saúde, o usufruto do direito ao lazer são alguns dos requisitos para a concretização de um novo modelo de desenvolvimento humano, mais sustentável, tendo em vista a efetivação da igualdade plena, da inclusão e da proteção social. Os decisores públicos e a sociedade civil devem implementar planos de ação conjuntos, que eliminem ou mitiguem quaisquer violações dos direitos humanos.

As práticas discriminatórias no seio dos estados de direito democrático, nos setores da saúde, do turismo e da cultura, como também nas instituições de ensino, espelham os preconceitos sociais e os estigmas culturais, que perpetuam a discrimação racial e por género, enraizada na sociedades contemporâneas, minando o primado do direito e da dignidade humana.

Requere-se que as instituições de ensino superior e os centros de investigação exerçam  uma práxis pedagógica promotora da mudança de paradigma e assente na valorização do potencial humano, na produção de conhecimento, na partilha das aprendizagens e na erradicação do preconceito.

As instituições culturais e de ensino têm por incumbência o cumprimento da missão de responsabilidade social, consagrada em sucessivas declarações e convenções internacionais: a criação de conhecimento, produção de clarividência científica e de trabalho criativo, assente no respeito pela diversidade cultural. 

O combate a todas as formas de discriminação, como parte integrante da literacia ética, deverá ser o modo de atuação destas instituições nas comunidades onde se inserem. A Antidiscriminação deverá refletir-se na oferta formativa e no projeto pedagógico. 

As expressões artísticas e a educação artística podem contribuir para mensurar a qualidade das transformações socioeconómicas que ocorrem em cada território e possibilitar a reflexão sobre o modelo de desenvolvimento que se ambiciona: uma economia e uma ação política mais humanizada e mais centrada nas pessoas. 

Alude-se às palavras do pedagogo Paulo Freire, parafraseando, por sua vez, o poeta espanhol Antonio Machado: «Ninguém caminha sem aprender a caminhar, sem aprender a fazer o caminho caminhando, refazendo e retocando o sonho pelo qual se pôs a caminhar».

2.2 A função social da arte no processo de desenvolvimento humano

Desde o paleolítico as manifestações artísticas foram um veículo comunicacional e uma forma de expressão de poder simbólico, associado a rituais mágicos-totémicos. Desde então, a função social da arte (Garber, 2004) tem sido mutável e alvo de um contínuo percurso evolutivo até à contemporaneidade (Danto, 1964, 1987, 1997/2006). Desde a contemplação estética platónico-aristotélica até à expressão política e crítica social, a arte tem constituído um instrumento formador de poder, vindo a refletir o estado de desenvolvimento humano. 

Como considera Foucault (1999/2022), a formação histórica do poder assenta numa «mecânica grotesca» cuja «maximização dos efeitos de poder [acontecem] a partir da desqualificação daquele que os produz» (p.25). 

As imagens, nomeadamente as caricaturais e satíricas, sempre desempenharam uma função de formação de poder ou de crítica aos poderes vigentes. A identificação de quais as funções sociais que a arte desempenha está dependente da contextualização do lugar onde ela ocorre (Garber, 2004), considerando as suas diferentes dimensões, culturais, educativas, políticas e históricas.

O contexto geopolítico da segunda metade do século XX, de bipolarização ideológica, foi um terreno fértil para o desenvolvimento de práticas artísticas contra-hegemónicas, pós-duchampianas, assentes na crítica à autoridade e ao imperialismo (Danto, 1964, 1987, 1997/2006).

Até à instituição da transvanguarda pós-moderna, proliferaram uma heterogeneidade de movimentos e expressões artísticas comprometidas com um sentido de bem comum e da responsabilidade social da arte (Danto, 1964, 1987, 1997/2006) – Expressionismo Abstrato, Art Brut, Nouveau Réalisme, Tropicalismo, Neoconcretismo, Arte Povera, entre outros. Também nas décadas de 80 e 90, o artivismo exerceu um papel ativo na crítica ao neoliberalismo e à globalização.

O trabalho das Guerrillas Girls (imagem de capa) constitui um excelente exemplo de como arte pode exercer um papel político preponderante, tendo em vista o desenvolvimento do pensamento crítico e o combate à discriminação, nomeadamente sobre a Mulher. A emancipação feminina, o empoderamento e a igualdade de género são assuntos convocados para o discurso da arte. Exige-se que as instituições culturais e museológicas materializem, com urgência, as práticas antidiscriminatórias na sua programação.

Na contemporaneidade, acontece um antagonismo, se por um lado a arte é utilizada como uma ferramenta para a promoção da emancipação social, confrontando os desafios globais, como a desigualdade, a injustiça e a exclusão, por outro lado o mercado da arte constitui um mecanismo de validação, assente na construção de valor especulativo, subvertendo os valores, essência e função social da arte. 

A arte, nomeadamente a pintura, tornou-se, progressivamente, numa mercadoria, num instrumento de formação de valor, de ordem simbólica, de afirmação de prestígio, hierarquização protocolar, estatuto social e autoridade moral (Berger, 1972/2018). A figura do colecionador-mecenas foi progressivamente substituída pelo espectador-proprietário (Berger, 1972/2018).  

No caminho da modernidade para a hipermodernidade (Lipovetsky, 2017/2019), as alterações socioeconómicas, provocaram consecutivas mudanças no paradigma cultural e forçaram o questionamento de qual a função social da arte (Adorno, 1966, 1970; Backer, 1933; Bell, 1979; Bourdieu, 1972/2018, 1979,1992).

O sujeito-autor foi substituído pelo sujeito (re)produtor de representações de poder (Berger, 1972/2018; Foucault, 1999/2022). O modelo contemplativo platónico-aristotélico, de deleite estético, comprometido com o seu dever moral de aproximação mimética ao real, foi sendo progressivamente substituído pelo poder hedonista das imagens, preterindo-se a autoridade moral dos representados e dos encomendadores (Berger, 1972/2018). 

A perpetuação de um eco disciplinador das imagens aconteceu através da instituição de um novo poder, voyeurista (Berger, 1972/2018; Lipovetsky, 2017/2019). Subjacente ao hedonismo das imagens está a panfletização do prazer e o acesso à propriedade do mesmo (Adorno, 1966, 1970; Backer, 1933; Bell, 1979; Bourdieu, 1972/2018, 1979, 1992).

3. Conclusões

A arte sempre constituiu um instrumento de formação e exercício de poder (Berger, 1972/2018). A arte possibilita mensurar o estado de desenvolvimento civilizacional e exercer a crítica sobre as transformações sociais, económicas, políticas e estéticas. 

A capacidade autoral e a presença social dos artistas constituiu uma ameaça aos poderes instituídos e à ordem social e moral aceite (Berger, 1972/2018). A tirania do belo sobre o feio e a perseguição da “anormalidade” (Foucault, 1999/2022) – leia-se, fora da norma institucional ou coletivamente aceite – assentaram na construção de um juízo moral, formador de autoridade que instituiu uma hierarquização social, fundada na raça e no género, para justificar a submissão das imagens à autoridade e garantir a perpetuação da exploração laboral. 

O consumismo contemporâneo entronizou os produtos culturais da sedução visual (Lipovetsky, 2017/2019). A cultura das imagens do globalismo fundou poderes supranacionais, mediou as relações, disciplinou as emoções, desvalorizou a criatividade e o espírito crítico (Berger, 1972/2018; Foucault, 1999/2022; Lipovetsky, 2017/2019), constituindo uma ameaça à ética e aos princípios do direito.

Olhar (ou não olhar) para o visível (ou para o invisível), enquanto exercício de liberdade, é sempre uma escolha, por isso, é um ato político, de transgressão, de denúncia, de questionamento da autoridade.

  1. Referências:
  • Adorno, T. W. [1966] (1990). Dialética negativa. Londres: Routledge.
  • Adorno, T. W. (1970). Teoria Estética. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70
  • Baker, C. E. (1933). The Social Function of Art. Social Science, 8(3), 281–291. http://www.jstor.org/stable/23907078
  • Bell, M. J. (1979). Social Control/Social Order/Social Art. SubStance, 8(1), 49–65. https://doi.org/10.2307/3684143
  • Berger, J. [1972] (2018). Modos de Ver. Trad. Jorge Leandro Rosa. Antígona
  • Bourdieu, P. (1979). La Distinction. Critique Sociale du Judgement. Paris: Minuit.
  • Bourdieu, P. [1992] (1996). As Regras da Arte. Génese e Estrutura do Campo Literário. São Paulo:
  • Companhia das Letras.
  • Danto, A. C. [1997] (2006). Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da História.
  • Trad. Saulo Krieger. São Paulo: Odysseus Editora.
  • Danto, A. (1964). The Artworld. The Journal of Philosophy, 61(19), 571–584. https://doi.org/10.2307/2022937
  • Danto, A. (1987). The State of the Art. New York: Prentice Hall Press.
  • Foucault, M. [1999] (2022). Os Anormais. Trad. Miguel  Martins. Edições 70.                                    
  • Garber, E. (2004). Social Justice and Art Education. Visual Arts Research, 30(2), 4–22. http://www.jstor.org/stable/20715349
  • Goes, D. (2023a). A função social da arte: a criatividade como estratégia de desenvolvimento (I). A Pátria – Jornal da Comunidade Científica de Língua Portuguesa. Ponte Editora. ISSN 2184-2957. https://apatria.org/artigo-cientifico/a-funcao-social-da-arte-a-criatividade-como-estrategia-de-desenvolvimento-i/. Disponível em: https://doi.org/10.13140/rg.2.2.20939.46887
  • Goes, D. (2023b). “Olhar é um ato político” [Speech]. Think+2023 International Conference on Digital Economy, Tourism and Human Development. Funchal: Instituto Superior de Administração e Línguas. https://www.youtube.com/watch?v=t_2dKXAp1nU&t=2s
  • Goes, D. (2023c). A função social da Arte no processo de desenvolvimento humano [Conference Presentation]. Think+2023 International Conference on Digital Economy, Tourism and Human Development. Funchal: Instituto Superior de Administração e Línguas. http://dx.doi.org/10.13140/RG.2.2.33329.86886
  • Lipovetsky, G. [2017] (2019). Agradar e Tocar: ensaio sobre a sociedade da sedução. Trad. P. Duarte. Edições 70.
  • UNAIDS. (2021). Global AIDS Strategy 2021-2026 — End Inequalities. End AIDS. https://unaids.org/sites/default/files/media_asset/global-AIDS-strategy-2021-2026_en.pdf

Imagem de capa: Instalação de Guerrilla Girls, In Tate Modern, 2023, Londres. Foto por Diogo Goes

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Uma resposta

  1. O excelente artigo do Professor Diogo Goes, que conclui com a transgressão no olhar, direito de cada um, razão de cada qual, faz por mencionar que o poder do dinheiro, que costumeiramente adultera e corrompe esse olhar, muitas vezes evitando a confrontação, o coopta, o inclui, com o fito exclusivo de o anular, posto que uma vez associado, quase tudo perde de seu poder crítico, desassociando-se de qualquer função social. Não havendo mais denúncia alguma.

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