- Introdução:
O presente artigo pretende agregar numa mesma proposta reflexiva, relacionando a Arte com três eixos de pensamento: a vanguarda da economia digital, os desafios do turismo acessível e sustentável e a centralidade da ética nos processos de desenvolvimento humano. Para o efeito reúne-se três resenhas comentadas sobre recentes documentos – entrevista, discurso e comunicação científica – relativos às temáticas da função social da arte, procurando verificar, a partir da revisão à literatura publicada, quais os contributos da arte no “empoderamento” e na emancipação social.
Aqui se apresentam, ao longo das próximas semanas, os seguintes resumos comentados: da entrevista publicada em “Caprichos de Goes” , publicada na Revista Saber Madeira, 310 (Goes, 2023a); do discurso “Olhar é um ato político” (Goes, 2023b), proferido por ocasião da sessão de abertura da THINK+International Conference on Digital Economy, Tourism and Human Development; e da comunicação “A função social da arte no processo de desenvolvimento humano” (Goes, 2023c), apresentada também nesta conferência, organizada pelo Instituto Superior de Administração e Línguas, em parceria com o Instituto Ibero-Americano de Compliance e a Ponte Editora.
2. Metodologia:
Do ponto de vista teórico-metodológico as intervenções proferidas, que agora se transcrevem e são comentadas, foram devidamente fundadas, tendo como recursos a uma revisão à literatura de referência publicada nas últimas décadas, nomeadamente, considerando os trabalhos de Adorno (1966/1990, 1970), Bell (1979), Benjamin (1936/2020), Berger (1972/2018), Bourdieu (1979), Danto (1964, 1987, 1997/2006), Habermas (1962, 1968) e outros (1974). Procedeu-se a uma análise empírica às práticas artísticas desenvolvidas no contexto ocidental, nas décadas de 60 e 70 do século XX, tendo em vista o sentido político da sua realização e a mensagem intrínseca às obras. Realizou-se uma uma análise comparada entre a produção artística do período em estudo e as práticas no século XXI, considerando a literatura publicada no último decénio, nomeadamente, no espaço luso-brasileiro. Foi analisado o Relatório do Mercado de Arte Global de 2021, da Artprice (Ehrmann, 2021). Foram ainda considerados para o contexto português os dados do Instituto Nacional de Estatística – Anuário Estatístico de Portugal (INE, 2022a) e Estatísticas da Cultura do (INE, 2022b, 2021).
3. Resenha:
3.1 “Caprichos de Goes”: Criatividade como estratégia de desenvolvimento1
A arte e a ciência conjugadas permitiram ao longo da história, através da criatividade, a atualização discursiva e a implementação, às escalas locais e globais, de novas estratégias de desenvolvimento, centradas na valorização do potencial humano. A permanente consciencialização da sociedade contemporânea e dos decisores públicos para o dever ético de apoiar e criar condições para a produção artística e científica é devida.
De acordo com recentes dados do Instituto Nacional de Estatística, relativos a 2020 e 2021, o investimento em atividades culturais e criativas dos municípios da Região Autónoma da Madeira, por contraste com o espaço continental, totalizou os piores resultados do país, contrariando a resposta à pandemia registada ao nível nacional (INE, 2022a, 2022b, 2021). Nesse período, as galerias de arte viram diminuir o número de exposições e de obras expostas. Já a realidade museológica regional anterior à pandemia não era animadora, entre 2011 e 2019 os museus registaram um total de perdas acumuladas de cerca de 700 mil visitantes (Goes, 2021).
É possível notar em vários inquéritos e estudos que a crise pandémica veio acentuar as fragilidades dos setores educativos e culturais, impactando nas aprendizagens e na confiança do mercado da arte, respetivamente. A precariedade das relações laborais terá acentuado as dificuldades de formação de rendimento dos artistas. Nas instituições culturais e de ensino persistem necessidades, veementes, de diversificação da oferta cultural e formativa, a inclusão das comunidades locais nos processos de criação de conhecimento e a captação e formação de novos públicos. Assegurar estabilidade laboral e proteção social de docentes, investigadores, artistas e profissionais das artes é essencial para o cumprimento dos direitos culturais, consagrados pelo direito internacional e das incumbências constitucionais, consagradas nas Tarefas Fundamentais do Estado(Miranda, 2007).
Contudo, ao nível internacional, em contra ciclo, de acordo com o Relatório do Mercado de Arte Global de 2021, da Artprice (Ehrmann, 2021), o mercado de leilões de arte atingiu um volume de faturação superior a 17 biliões de dólares, constituindo um aumento de 60% em relação a 2020. Precisamos recuar a 2014 ou 2011 para registar valores mais elevados. Tal realidade não deixa de trazer um outro conjunto de preocupações, atendendo ao facto desta formação de valor especulativo, não se repercutir, efetivamente, no aumento do rendimento dos artistas, nem na qualidade da produção cultural e mascarar potenciais práticas ilícitas. A falta de regulação do mercado da arte e as possíveis ilicitudes das práticas associadas, podem constituir ameaças à definição da função (social) que a arte deve desempenhar nas comunidades locais.
A adoção de estratégias de desenvolvimento assentes na criatividade, só será possível com uma aposta contínua na formação artística, na criação de novos espaços de criação e através do financiamento à produção cultural, tendo em vista assegurar um contínuo aparecimento de “novos talentos”. Considera-se, por isso, que é imprescindível apoiar a criação artística para a concretização de uma verdadeira democracia cultural, participada e promotora do acesso à educação artística, à produção e fruição cultural para todos. Estas são tarefas fundamentais para devolver a cultura às pessoas e para a plena efetivação dos direitos culturais consagrados constitucionalmente (Miranda, 2007).
A arte sempre constituiu um instrumento de poder e de formação de poder. A arte possibilita ao ser humano mensurar o seu estado de desenvolvimento civilizacional e por conseguinte dá a oportunidade de exercer a crítica sobre as transformações sociais, económicas, políticas e estéticas que acontecem na casa comum que habitamos (Adorno, 1966, 1970; Backer, 1933; Bell, 1979; Berger, 1972/2018; Bourdieu, 1971, 1979, 1992). A prática artística, enquanto ideia e processo contínuo, não se dissocia da vida, antes, emana desse trabalho utópico de transformar e melhorar o mundo.
De acordo com Berger (1972/2018): “Só vemos aquilo que olhamos. Olhar é um ato de escolha.” Por isso, se olhar é um ato político, pintar também o é. Ao longo da história, a capacidade autoral e a presença social dos artistas constituiu uma ameaça aos poderes instituídos e à ordem social e moral aceite (Adorno, 1966, 1970; Backer, 1933; Bell, 1979; Benjamin, 1936/2020; Berger 1972/2018; Bourdieu, 1971, 1979, 1992).
A tirania do belo sobre o feio assentou na construção de um juízo moral, formador de autoridade, que instituiu uma hierarquização social, racial e de género, para justificar a exploração laboral. O consumismo contemporâneo entronizou os produtos culturais da sedução visual (Lipovetsky, 2017). A cultura das imagens, patrocinada pelo neoliberalismo e propagada pela globalização, fundou novos poderes supranacionais, hipermediatizou as relações, disciplinou as emoções, determinando-as, desvalorizou a criatividade e o espírito crítico, constituindo uma ameaça à democracia e aos princípios do direito.
A arte enquanto veículo comunicacional, formador de poder, pode e deve cumprir a sua função social, contribuindo para a interpretação histórica, erradicação de todas as formas de discriminação e desconstrução da meritocracia das elites (Adorno, 1966, 1970; Backer, 1933; Bell, 1979; Benjamin, 1936/2020; Berger, 1972/2018; Bourdieu, 1971, 1979, 1992).
4. Conclusões (da resenha de “Caprichos de Goes”)
A educação artística constitui uma ferramenta imprescindível para a emancipação social (Garber, 2004). As expressões artísticas, integradas nos projetos educativos de forma interdisciplinar, no contexto da educação formal e informal, e em programas curriculares específicos, desempenham um papel preponderante no desenvolvimento humano, nomeadamente no estímulo de soluções criativas para os problemas quotidianos e na aprendizagem da ética.
O sistema educativo enfrenta problemas estruturais, desde há várias décadas, nomeadamente, no campo pedagógico e organizacional. Estando a capacidade empreendedora relacionada com o estímulo à criatividade é fundamental que as instituições de ensino estimulem a criatividade e incentivam o trabalho colaborativo. Contudo, verifica-se que o paradigma vigente, leva estas instituições a premiar a competição e a valorizarem os rankings e as práticas avaliativas, preterindo a efetividade das aprendizagens e o desenvolvimento comunitário. A criatividade desempenha, por isso, um papel na desconstrução dos mitos meritocráticos. O mundo deve ousar partilhar e colaborar, em vez de competir.
No contexto das ultraperiferias é essencial atrair capital humano, nomeadamente nos domínios da investigação em ciência e nas artes. Projetos de intercâmbio internacional devem ser valorizados, tendo em vista a partilha de experiências e o estabelecimento de novas sinergias. No campo da intermédia, do metaverso e da inteligência artificial abrem-se portas quer no âmbito do pensamento científico e da criatividade quer no âmbito da economia. A redefinição do valor da produção artística e científica, a par do questionamento da capacidade autoral e da função social, deverá estar sempre relacionado com o sentido ético que se exige à produção científica e artística. A arte, como projeto inacabado, irá, inevitavelmente, fazer uso da inovação e das novas tecnologias digitais, a fim de cumprir a sua função social de acrescentar conhecimento ao mundo.
Nota: (1) Texto adaptado a partir da entrevista em “Caprichos de Goes”: Goes, D. (2023, março). Diogo Goes [Entrevista por Dulcina Branco]. Revista Saber Madeira, 310. O Liberal. 12-15. ISSN 0873-7290
5. Referências:
- Adorno, T. W. [1966] (1990). Dialética negativa. Londres: Routledge.
- Adorno, T. W.(1970). Teoria Estética. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70
- Adorno, T.; Horkheimer, M. [1944] (2002). Iluminismo como Decption Mass. In Noerr, Gunzelin Schmid (ed.). Dialética do Iluminismo: Fragmentos Filosóficos. Trad. Edmund Jephcott. Stanford, Califórnia: Stanford University Press. https://web.archive.org/web/20170614021407/http://www.contrib.andrew.cmu.edu/~randall/Readings%20W2/Horkheimer_Max_Adorno_Theodor_W_Dialectic_of_Enlightenment_Philosophical_Fragments.pdf
- Baker, C. E. (1933). The Social Function of Art. Social Science, 8(3), 281–291. http://www.jstor.org/stable/23907078
- Bell, M. J. (1979). Social Control/Social Order/Social Art. SubStance, 8(1), 49–65. https://doi.org/10.2307/3684143
- Benjamin, W. [1936] (2010). A Obra de Arte na época da sua reprodução mecanizada. Trad. João Maria Mendes. Escola Superior de Teatro e Cinema
- Berger, J. [1972] (2018). Modos de Ver. Trad. Jorge Leandro Rosa. Antígona
- Bourdieu, P. (1979). La Distinction. Critique Sociale du Judgement. Paris: Minuit.
- Bourdieu, P. [1992] (1996). As Regras da Arte. Génese e Estrutura do Campo Literário. São Paulo: Companhia das Letras.
- Danto, A. C. [1997] (2006). Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da História. Trad. Saulo Krieger. São Paulo: Odysseus Editora.
- Danto, A. (1964). The Artworld. The Journal of Philosophy, 61(19), 571–584. https://doi.org/10.2307/2022937
- Danto, A. (1987). The State of the Art. New York: Prentice Hall Press.
- Ehrmann, T. (Ed.). (2021). The Art Market in 2021[Report]. Artprice.com. https://www.artprice.com/artprice-reports/the-contemporary-art-market-report-2021
- Garber, E. (2004). Social Justice and Art Education. Visual Arts Research, 30(2), 4–22. http://www.jstor.org/stable/20715349
- Goes, D. (2023a, março). Diogo Goes [Entrevista por Dulcina Branco]. Revista Saber Madeira, 310. O Liberal. 12-15. ISSN 0873-7290
- Goes, D. (2023b). Goes, D. (2023, março 2). “Olhar é um ato político” [Speech]. Think+2023 International Conference on Digital Economy, Tourism and Human Development. Funchal: Instituto Superior de Administração e Línguas. https://www.youtube.com/watch?v=t_2dKXAp1nU&t=2s
- Goes, D. (2023c). Goes, D. (2023). A função social da Arte no processo de desenvolvimento humano [Conference Presentation]. Think+2023 International Conference on Digital Economy, Tourism and Human Development. Funchal: Instituto Superior de Administração e Línguas. http://dx.doi.org/10.13140/RG.2.2.33329.86886
- Goes, Diogo. (2021, dezembro 27). Museus e Turismo na Madeira (2001-2020): balanço das duas décadas de relações dissonantes. A Pátria – Jornal da Comunidade Científica de Língua Portuguesa. Ponte Editora. ISSN 2184-2957. https://apatria.org/turismo/museus-e-turismo-na-madeira-2001-2020-balanco-as-duas-decadas-de-relacoes-dissonantes/
- Instituto Nacional de Estatística – INE. (2022a). Anuário Estatístico de Portugal: 2021. Lisboa: INE. https://www.ine.pt/xurl/pub/6174083 ISSN 0871-8741. ISBN 978-989-25-0604-3
- Instituto Nacional de Estatística – INE (2022b). Estatísticas da Cultura: 2021. Lisboa: INE, 2022. https://www.ine.pt/xurl/pub/18212178. ISSN 1647-4066. ISBN 978-989-25-0615-9
- Instituto Nacional de Estatística – INE. (2021). Estatísticas da Cultura: 2020. Lisboa: INE. https://www.ine.pt/xurl/pub/436993273 ISSN 1647-4066. ISBN 978-989-25-0580-0
- Lipovetsky, G. (2019). Agradar e Tocar: ensaio sobre a sociedade da sedução (P. Duarte, Trad.). Edições 70 (Trabalho original publicado em 2017).
- Miranda, J. (2007). Direitos Humanos e Direitos Culturais. O Direito, 138(IV), 55–67. http://www.fd.ul.pt/Portals/0/Docs/Institutos/ICJ/LusCommune/MirandaJorge.pdf
Foto de capa: Direitos Reservados de Diogo Goes. “If you ask a donkey about his world, the last thing he describes is a stable”, de Diogo Goes (2023), pintura, colagem e assemblagem sobre madeira.