O ensaio que agora dá corpo à leitura versa sobre os principais assuntos abordados pelos autores Cymbron (1994) e Kirkpatrick (2022) no tocante ao tema em epígrafe, nomeadamente a influência italiana na música portuguesa do século XVIII, a ópera, a música de tecla, os locais reservados ao espetáculo, e os compositores.
Destarte:
O início do reinado de D. João V (1707-1750) foi marcado por um auspicioso antecedente económico, a chegada da primeira remessa de ouro do Brasil a Lisboa no ano de 1699, e, pouco depois, em 1714, pelo alívio da supressão das hostilidades bélicas com Espanha, referentes à Guerra da Sucessão. Inicia-se então uma fase de prosperidade política e cultural que conduziu à renovação das instituições e da vida musical. Contudo, era percetível a tensão entre a afirmação do poder Absoluto do rei, e a influência que a Igreja exercia sobre as instituições políticas, derivada da clericalização do poder político depois da Contra-Reforma e durante o período filipino.
No século XVIII Roma foi um dos maiores centros de produção musical da Europa, e dela emanou toda a influência para Portugal. No seguimento de celebrações pontificais da época, o Marquês de Fontes e o Conde das Galveias deslocaram-se a Roma através de visitas diplomáticas, aproveitando as oportunidades para contratar cantores italianos, que vieram servir para a Capela Real. A reforma da Capela Real foi um marco na renovação da vida musical portuguesa. Em 1713 dá-se a fundação de uma instituição adjacente à Capela que viria a tomar o nome de Seminário da Patriarcal, e que veio a constituir a principal escola de música em Portugal, onde serviram e ensinaram músicos italianos, entre os quais, o mestre da Cappella Giullia do Vaticano, Giuseppe Domenico Scarlatti (1685-1757), que a dirigiu, e teve como vice-mestre e organista o português Carlos Seixas. Em 1716, a Capela Real foi elevada à dignidade de Sé Patriarcal, e em 1760 compunha-se de 46 cantores italianos. A influência italiana fez ainda sentir-se pelo ensino do canto capucho do veneziano Giovanni Giorgi, e pelas suas 300 obras religiosas (Arquivo da Sé de Lisboa) na escola de cantochão criada no Convento franciscano de Santa Catarina de Ribamar. A preferência pelo contacto com a música romana notou-se também pelo envio de bolseiros para Roma a fim de aí completarem a sua formação musical. Entre eles, João Rodrigues Esteves, futuro mestre do Seminário da Patriarcal, e Francisco António de Almeida, futuro organista da Capela Real. O Barroco religioso romano caracterizou-se pela sua monumentalidade policoral, acompanhado de instrumentos. A extensão da sua influência às restantes igrejas do país fez-se através da atividade da Capela Real e do Seminário da Patriarcal, de que foi exemplo o conjunto vocal-instrumental de raiz italiana presente na Sé de Évora entre 1724-1725.
As principais formas de música italiana importadas nessa época e que vieram substituir a tradição espanhola, de Frei Pedro da Conceição ou do catalão D. Jayme de La Te y Sagau, obtendo rápida adesão das elites, foram a serenata, um género semioperático italiano, cantado sem cenários, nem guarda-roupa, podiam ser festivas (cerimónias de gala) ou privadas, em contexto real ou aristocrático, em que se destacou Francisco António de Almeida e o Barão d´Astorga; a opera seria; as óperas e serenatas musicais promovidas por Alessandro Paghetti, sobretudo a partir de 1735, quando funda o primeiro teatro de ópera português, o Accademia alla Piazza della Trinità, juntamente com Farnace de Metastasio, e musicado pelo bolonhês Gaetano Maria Schiassi; os bailados introduziram a novidade das “danças altas”, obtendo a atenção do público nobre, ainda que com a divisão dos sexos e a proibição da interpretação de papeis masculinos pelo género feminino.
Entre os locais reservados à representação da ópera evidencia-se a corte régia, o Teatro da Trindade, o Teatro da Rua dos Condes e o Teatro do Bairro Alto em Lisboa. Na corte, segundo Brito e Cymbrion (1994) há registo de 6 óperas, todas de género cómico, executadas pelos cantores da Capela Real, em palcos provisórios montados no Paço da Ribeira durante o Carnaval, três das quais são da autoria de Francisco António de Almeida de que é exemplo La pazienza di Socrate (1733), cujo libreto foi adaptado pelo secretário do rei, Alexandre de Gusmão, ou La Spinalba ovvero il vecchio matto (1739). Em 1738 a Academia da Trindade é substituída pelo Teatro da Rua dos Condes, e nele ouviram-se óperas de compositores como Rinaldo di Capua (Lisboa, 1740-1742), e Leonardo Leo, em que, por vezes, se assistiram a intermezzi cómicos cantados durante os intervalos. O Cónego Lázaro Leitão também tentou promover os espetáculos de ópera em 1733, publicando libretos bilingues das óperas, três quartos das quais tinham texto de Metastasio. No Teatro do Bairro Alto, assistia-se a espetáculos de marionetas, também denominados de óperas, sendo o equivalente nacional de géneros semioperáticos, também equiparados ao ballad opera inglesa, ou, um pouco mais tarde, a ópera-comique francesa e o Singspiel alemão. A autoria das narrativas pertenciam ao advogado judeu António José da Silva, posteriormente julgado e executado pela Inquisição, em 1739. Entre 1733 e 1739 estiveram em cena oito óperas em português, entre as quais Guerras do alecrim e manjerona, As variedades de Proteu, e Anfitrião ou Júptier e Alcmena.
Aqui o público era mais variado, compondo-se de membros da burguesia e nobreza. A temática sobretudo mitológica, mistura personagens sérias e cómicas, reflectindo a tradição barroca dos libretos italianos prévio à reforma de Metastasio, mas contendo uma componente crítica e satírica, invulgar para a sociedade joanina.
Em termos gerais o género operático oscilou entre os géneros menores da farsa e do entremez e as traduções e as adaptações dos dramas de Metastasio e de outros escritores de libretos de ópera, assim como de tragédias e comédias essencialmente importadas, sobretudo francesas e italianas, representadas com ou sem música de cena. Não se verificou que houvesse o objectivo de produzir obras nacionais de qualidade.
Em 1742, quando a saúde do rei foi profundamente abalada por um ataque que o deixou hemiplégico e o tornou fervorosamente devoto, o panorama musical sofreu um revés. O rei proibiu todas as representações teatrais em Lisboa, permitindo apenas as oratórias e as festas de Igreja. Mas, apesar do florescimento da ópera e da música teatral de raiz italiana ter durado menos de uma década, a sua relevância superou a das restantes atividades musicais profanas, de que nos chegaram, por exemplo, as noventa Cantatas humanas do compositor catalão D. Jayme de la Te y Sagau (1736).
No tocante à música de tecla, durante o reinado de D. João V, é de salientar o trabalho de José António Carlos Seixas (1704-1742) e Domenico Scarlatti.
Carlos Seixas, filho do organista da Sé de Coimbra, Francisco Vaz, foi para Lisboa com 16 anos, nomeado organista e vice mestre da Capela Real e Patriarcal, nesta altura dirigida por Domenico Scarlatti, tornou-se no compositor de tecla mais importante da 1.ª metade do século 18, de que se preservaram cento e cinco sonatas. A sonata composta por Seixas e Scarlatti para tecla, na última fase de vida, representam a primeira fase de desenvolvimento, do barroco final para o período pré-clássico. Seixas foi equiparado a Carl Philip Emmanuel Bach, filho de Johan Sebastian Bach, pelo musicólogo Santiago Kastner, devido aos traços líricos e sentimentais. As sonatas caracterizam-se por terem associado um minuete, típico da dança francesa, onde se encontram vestígios em traduções de manuais de dança que irão aparecer nesta altura. Seixas é autor de três obras de relevo dado que cada uma exprime um importante género orquestral: uma Sinfonia em estilo italiano, com a sua sequência de três andamentos, rápido, lento, rápido; uma Abertura em estilo francês, com o primento andamento mais curto em ritmo majestoso seguido de secções mais vivas e rápidas; um notável Concerto para cravo e orquestra que constitui um dos primeiros exemplo do género em toda a Europa.
Domenico Scarlatti veio dirigir a Capela Real e Patriarcal de Lisboa em 1719, tendo permanecido até 1729, ausentando-se pontualmente em viagem para Itália e França, e mudando-se para Espanha, ao serviço da corte de Madrid, em 1729, definitivamente. Compôs cerca de 555 sonatas para tecla, em compasso binário, na qual se baseiam as técnicas atuais de piano, e foi pioneiro a dominar o ritmo e a sintaxe musical. A obra Essercizi per gravicembalo contem 30 sonatas, em formato de exercícios, publicados em Londres em 1738, tendo obtido projeção e reconhecimento europeu (Kirkpatrick, 2022). No Arquivo da Sé de Lisboa encontram-se três obras sacras da sua autoria, um motete Te gloriosus, um Te Deum e um salmo Laudate pueri, escritas para vozes e baixo contínuo (Arquivo da Sé de Lisboa).
Bibliografia
Brito, M. C. de, Cymbron, L. (1994). Capitulo 5: O Século XVIII. In História da Música Portuguesa (pp.102-124). Lisboa, Portugal: Universidade Aberta
Kirkpatrick, R. (2022, October 22). Domenico Scarlatti. Encyclopedia Britannica. https://www.britannica.com/biography/Domenico-Scarlatti
Consultada
S/Autor. (S/data). Domenico Scarlatti. Biografia. Retirado de: https://www.casadamusica.com/pt/artistas-e-obras/compositores/s/scarlatti-domenico/?lang#
D´Alvarenga, J. P. (1997/98). Domenico Scarlatti, 1719-1729: o período português. Revista Portuguesa de Musicologia, 7-8, 95-132. Retirado de:
https://rpm-ns.pt/index.php/rpm/article/viewFile/159/161
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