Qual a morte que importa ao Estado brasileiro? Esta pergunta é uma reflexão sobre o massivo assassinato de jovens negros nas periferias e comunidades vulneráveis do país. O assassinato do adolescente João Pedro Mattos Pinto, 14 anos, atingido com um tiro de fuzil durante ação policial no Complexo do Salgueiro, no Rio de Janeiro, mostra a cruel realidade de um estado de exceção que legitima mortes da população pobre e historicamente excluída de políticas públicas de direitos humanos.
A indiferença em garantir vidas negras é revelada por uma prática de política de extermínio de controle social do projeto de segurança pública que tem como foco a morte sumária das classes trabalhadoras e marginalizadas.
O assassinato de João Pedro engrossa as estatísticas de um projeto genocida e necropolítico de segurança pública que utiliza as forças repressivas para colocar em prática um poder soberano de um direito que julga ter sobre quem deve matar e morrer.
Como lembra Achille Mbembe (2018) a necropolítica que exerce o biopoder, o estado de exceção e a política da morte está presente nas situações pautadas por uma soberania que “reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais (MBEMBE 2018, p.123).
Do mesmo modo, tais práticas fazem parte de uma guerra na qual “seus exércitos não formam uma entidade distinta, e suas guerras não são guerras entre exércitos regulares. Não implicam a mobilização de sujeitos soberanos (cidadãos) que se respeitam mutuamente, mesmo que inimigos. Não estabelecem distinção entre combatentes e não combatentes ou, novamente, inimigo” e “criminoso” ((MBEMBE, 2018, p.133)
É no projeto de segurança pública pautado por grande letalidade das operações policiais que se revela a guerra cotidiana que faz de jovens negros os inimigos do Estado e que em nome de uma falsa proteção social extermina sumariamente a população negra no Brasil. E assim, os homicídios praticados pela polícia crescem no país. O estudo Monitor da Violência, divulgado este ano pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo e Fórum Brasileiro de Segurança Pública revela que as 5.804 mortes praticadas por policiais em 2019 representam mais de 10% de todos os homicídios no Brasil.
O estudo revela que a atuação mais crítica está nos estados do Amapá (15,1 homicídios por 100 mil habitantes), Rio de Janeiro (10,5 por 100 mil), Sergipe (7,2 por 100 mil), Pará (7 por 100 mil), Bahia (4,8 por 100 mil) e Rio Grande do Norte (4,7 por 100 mil), sendo que nos quatro primeiros do ranking a letalidade policial superou proporcionalmente as mortes praticadas por não policiais do estado de São Paulo, onde os homicídios comuns registraram 7 casos por 100 mil habitantes. O Monitor da Violência aponta que as maiores vítimas são homens negros de baixa renda, jovens com até 29 anos, com baixa escolaridade e moradores de favelas e periferias.
O recorte da letalidade racial é confirmado pelo Atlas da Violência 2019, estudo realizado pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo a publicação, os negros foram 75,5% de vítimas de homicídios no Brasil em 2017. A taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0.
Ainda segundo o Atlas da Violência 2019, no período de uma década (2007 a 2017), a taxa de assassinatos de negros cresceu 33,1%, já a de não negros apresentou um pequeno crescimento de 3,3%.


Todos os dramáticos resultados que as pesquisas de segurança pública mostram há décadas respondem à pergunta feita no início deste texto. Esta realidade é comprovada pelo que aconteceu com João Pedro, vítima da indiferença letal estimulada pela violência policial nas populações que possuem a maioria negra, acuadas e inseguras dentro das suas próprias comunidades, vulneráveis a operações executadas por forças policiais que deveriam protegê-las, mas que seguem a orientação agressiva de confronto como norma de combate ao crime.
Referências
IPEA. Atlas da violência 2017. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019
NEV. Monitor da Violência. Disponível em https://nev.prp.usp.br/projetos/projetos-especiais/monitor-da-violencia/
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Rio de Janeiro: n-1 edições, 2018.
Imagem: Reprodução/Twitter/@_danblaz




Uma resposta
Texto muito bom, uma análise real do que infelizmente vivenciamos neste país . O Brasil precisa reverter este quadro lamentável.O caso do adolescente citado veio à tona e os que possivelmente não foram para as estatísticas? Pessoas não são números são cidadãos.