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A PEC da Impunidade: Deputados brasileiros estão a blindar o Crime Organizado?

A PEC da Impunidade: Deputados brasileiros estão a blindar o Crime Organizado?

Caros leitores e leitoras,

Há um ano, neste mesmo espaço, escrevi sobre a corrupção, um tema universal, mas com raízes profundas na realidade brasileira. Infelizmente, a ameaça da corrupção continua pairando sobre nós, um fantasma viciante e fatal que assombra o poder em todos os cantos do mundo.

Hoje, um ano após aquele texto e seis anos depois de publicar meu livro sobre o assunto, vejo-me na obrigação de voltar a essa discussão. O motivo? Algo, no mínimo, aterrorizante.

Na noite de ontem, 16/09/2025, a Câmara dos Deputados do Brasil aprovou uma Proposta de Emenda a Constituição (PEC) que prevê a “blindagem” dos deputados. O texto aprovado dificulta a abertura de processos criminais e a prisão de deputados federais e senadores, além de estender a proteção a deputados estaduais, distritais e até a presidentes de partidos. Na prática, cria uma “casta” de poderosos, abrindo espaço perigoso para uma possível entrada do crime organizado nas Câmaras Legislativas do país, visto que blinda tanto o espaço como as pessoas que o ocupam das garras da lei.

Entre as principais mudanças propostas pela PEC, estão:

  • Necessidade de autorização: A proposta retoma a necessidade de que o Congresso Nacional (Câmara ou Senado) autorize a abertura de ações penais contra seus membros no Supremo Tribunal Federal (STF).
  • Restrição de prisão: A prisão em flagrante de um parlamentar só será válida para crimes inafiançáveis. A manutenção da prisão, mesmo nesses casos, dependerá da autorização da respectiva Casa Legislativa em até 24 horas.
  • Limitação de medidas cautelares: A PEC determina que medidas cautelares, como busca e apreensão, só poderão ser determinadas pelo STF.
  • Ampliação do foro privilegiado: O foro privilegiado é estendido a presidentes de partidos políticos com representação no Congresso.

A proposta ainda precisa ser aprovada em dois turnos no Senado Federal para entrar em vigor, e há sinalização de Senadores que não será aprovada por lá.

A discussão em torno dela é bastante controversa, com defensores argumentando que ela protege o mandato parlamentar de perseguições políticas e críticos afirmando que a medida busca garantir a impunidade e enfraquecer o combate à corrupção, abrindo espaço para a entrada dos popularmente chamados de “foras da lei”.

Essa proposta não afeta apenas crimes comuns. Ela dificulta investigações de improbidade administrativa, um ponto crucial quando se trata do uso do dinheiro público. Em outras palavras, a PEC cria um obstáculo legal para investigar o uso indevido de verbas públicas, especialmente em casos de emendas parlamentares[1].

Diante desse cenário, se torna ainda mais urgente e necessário voltarmos a debater o tema da corrupção.

Plenário da Câmara: deputados votam PEC da Blindagem Foto: Wilton Junior/Estadão

Mas afinal, que corrupção?

A discussão sobre as raízes da corrupção nos remete a uma indagação profunda: nascemos predispostos a ela, ou a adquirimos ao longo da vida? Em 2019, minha pesquisa de doutorado, que resultou no livro “Há corrupção na Educação? Relatos daqueles que vivem essa realidade no chão da escola pública brasileira” (Bocchi, 2019), revelou uma cultura de apropriação indevida de recursos públicos arraigada no Brasil. O mais alarmante foi constatar a invisibilidade dessa rede corrupta, fortalecida pelo consentimento, muitas vezes tácito, dos envolvidos. A cultura do “abafa” prevalecia: quem via, silenciava; quem ouvia, ignorava; quem falava, desmentia. O medo e a covardia se entrelaçavam, e a lei do mais forte ditava as regras.

Dois anos após a publicação, o cenário pouco mudou. A corrupção persiste, e o consentimento velado parece ser a norma. A persistência dessa dinâmica sublinha a urgência de investigações científicas robustas que explorem as complexas raízes da corrupção, testem hipóteses e provoquem uma reflexão cognitiva profunda sobre o tema. Convido você a mergulhar em uma jornada de descobertas sobre os fatores mentais que podem impulsionar atos corruptos, considerando o desenvolvimento cerebral e sua influência no comportamento humano.

A condição humana e as raízes sociais do desvio

Desde os primórdios da filosofia, pensadores como Sócrates (470 a.C.) defendiam que a maldade era fruto da ignorância, acreditando que o conhecimento levaria ao bem. Platão (427 a.C.), por sua vez, postulava a existência de um conhecimento inato, preexistente na alma, que determinava a condição humana. Já Aristóteles (384 a.C.) via o homem como a união de forma (alma) e matéria (corpo), com capacidades biológicas inerentes. Embora com visões distintas, esses filósofos gregos convergiam na ideia da alma como sede das ideias e do conhecimento.

Avançando no tempo, René Descartes (1596 d.C.) revolucionou o pensamento ao propor o dualismo cartesiano, dividindo o homem em “res cogitans” (coisa pensante, a mente) e “res extensa” (coisa externa, o corpo). Essa distinção abriu caminho para o estudo do cérebro como “coisa pensante”, ressaltando a primazia da razão. Posteriormente, o empirista John Locke (1632 d.C.) defendeu que a mente humana, ao nascer, era uma “tábula rasa”, moldada pela experiência e pelas operações internas do pensamento.

No século XX, o sociólogo Edwin Sutherland (1883-1950), com sua Teoria da Associação Diferencial (1939), lançou as bases para a compreensão do crime como um fenômeno aprendido socialmente. Sutherland argumentava que o comportamento criminoso não é inato, mas adquirido através da interação com grupos sociais, onde as técnicas e justificativas para o crime são transmitidas. Ele via o crime como um sintoma de desorganização social, que poderia ser mitigado por reformas estruturais. Suas ideias são um ponto de partida crucial para analisar a corrupção, que, segundo o Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei Nº 2.848/1940), configura crime de apropriação do poder para benefício próprio.

A neurociência moderna endossa a complexidade da formação humana, reconhecendo que somos produto de uma intrincada interação entre fatores genéticos e ambientais. Pesquisas recentes em epigenética, por exemplo, demonstram como o ambiente pode modular a expressão gênica sem alterar a sequência do DNA, influenciando o desenvolvimento cerebral e o comportamento (Meaney, 2010; Szyf, 2013). Essa perspectiva desafia a dicotomia “inato ou aprendido”, sugerindo que a predisposição genética pode ser ativada ou silenciada por experiências de vida.

O cérebro no comando: percepção, emoção e comportamento

A década de 1990 marcou o advento de tecnologias de imagem cerebral, como a ressonância magnética funcional (fMRI), que permitiram observar a atividade cognitiva em tempo real. Essa revolução confirmou que o conhecimento é construído por meio de conexões neurais. Nosso cérebro, desde o nascimento, é programado para interagir com o ambiente, formando um conectoma neural único, uma rede complexa de impulsos nervosos e substâncias químicas que decodificam informações e as direcionam para regiões específicas. Cada novo estímulo expande essa rede, permitindo a adaptação.

Contudo, a percepção da realidade não é uniforme. Embora o mecanismo de aprendizado seja similar, cada indivíduo processa as informações de forma singular, influenciado por memórias, vivências e histórico de vida. A percepção é, portanto, falha e subjetiva, moldada por aquilo que o cérebro considera mais relevante para a sobrevivência.

Nesse intrincado sistema, operam comportamentos intencionais e inconscientes. Enquanto os reflexos são respostas inatas, os comportamentos voluntários dependem da “permissão” da consciência, mas nem sempre são controlados por ela. A repetição de experiências cria circuitos neurais padrões, que são acionados em diversas situações, formando um repertório comportamental único.

A influência das emoções e a tomada de decisão moral

Somos seres profundamente emocionais. As emoções são respostas físicas a estímulos ambientais, enquanto os sentimentos são a experiência mental que atribuímos a essas emoções. Um exemplo claro é uma discussão: o aumento dos batimentos cardíacos e a tensão muscular são emoções, mas a interpretação e o significado dessa experiência são sentimentos, moldados por nossas memórias e histórico de vida.

O sistema límbico, localizado no centro do cérebro, é crucial para a orquestração das emoções. Estruturas como o hipotálamo (executor da emoção), as amígdalas cerebrais (reguladoras de emoções e agressividade) e o estriado (envolvido na formação de hábitos) desempenham papéis fundamentais. Embora o sistema límbico nos impulsione a reações espontâneas, situações novas exigem um processamento consciente. É aqui que entra o córtex pré-frontal (CPF), a região cerebral que nos distingue de outras espécies.

O CPF é o centro das funções executivas: planejamento, controle de impulsos, criatividade, reflexão e memória de curto prazo. Ele dialoga com o sistema límbico, regulando as emoções morais como indignação, compaixão e vergonha. No entanto, o CPF amadurece tardiamente, em média até os 25 anos. Antes disso, o indivíduo tende a reagir mais impulsionado pelo sistema límbico, ou seja, pelas emoções.

Isso levanta uma questão crucial: seria o ato corrupto um comportamento aprendido, um resultado de um sistema nervoso central em amadurecimento, de uma comunicação frágil entre CPF e sistema límbico, ou de um conectoma robusto, mas forjado em um aprendizado que negligenciou aspectos como empatia e cooperação? Como observa Eric Kandel (2020), neurocientista ganhador do Prêmio Nobel, “A liberação de dopamina não apenas cria uma sensação de prazer, mas também nos condiciona. O condicionamento, como sabemos, cria uma memória de longo prazo que nos permite reconhecer um estímulo na próxima vez que nos deparamos com ele e responder de modo adequado” (p. 178). Nossos julgamentos morais são intrinsecamente ligados às emoções inconscientes, moldadas por nossas experiências, memórias e, inegavelmente, pela nossa formação genética única.

Estudos recentes têm explorado a neurobiologia da tomada de decisões morais. Pesquisas utilizando fMRI, por exemplo, mostram que dilemas morais ativam redes cerebrais que incluem o córtex pré-frontal ventromedial (VMPFC) e a amígdala, sugerindo que a interação entre cognição e emoção é fundamental para o comportamento ético (Greene et al., 2001; Koenigs et al., 2007). Danos ao VMPFC, por exemplo, têm sido associados a deficiências na tomada de decisões morais, com indivíduos tendendo a escolhas utilitárias que desconsideram o dano emocional (Koenigs et al., 2007).

O papel da genética na predisposição comportamental

Os genes, segmentos de DNA que carregam instruções para a formação de organismos, têm uma presença significativa no cérebro humano. Embora a replicação genética seja geralmente equilibrada, anomalias podem levar a mutações que comprometem a funcionalidade cerebral e, consequentemente, o comportamento. Kandel (2020) classifica as doenças genéticas em simples (mutação de um único gene) e complexas (envolvimento de múltiplos genes e fatores ambientais).

Transtornos psiquiátricos como transtorno bipolar, depressão, esquizofrenia e demência frontotemporal, muitas vezes com componentes genéticos, podem resultar em comportamentos agressivos ou desordens morais. A psicopatia, um distúrbio com forte componente genético e ambiental, é caracterizada por comportamento antissocial e ausência de empatia. Cérebros com essas disfunções, combinados com ambientes sociais hostis e poucos estímulos cognitivos, têm seu desenvolvimento ainda mais comprometido, podendo predispor a comportamentos imorais.

Pesquisas em genética comportamental têm identificado genes que podem influenciar traços de personalidade e predisposições a certos comportamentos, incluindo impulsividade e agressão, que podem estar correlacionados com o comportamento corrupto (Rhee & Waldman, 2002; Beaver et al., 2013). No entanto, é crucial ressaltar que a genética não determina o destino, mas sim interage com o ambiente para moldar o comportamento.

A escolha da corrupção: recompensa e ambiente

As escolhas, embora aparentemente livres, são profundamente condicionadas pelo sistema de recompensa do cérebro, um circuito neural poderoso impulsionado pela dopamina. A liberação de dopamina, especialmente pela via mesolímbica (conexão entre o sistema límbico e o CPF), gera sensações de prazer e antecipação de recompensas, impulsionando comportamentos que podem levar à busca imediata de prazer e até mesmo a vícios.

No contexto da corrupção, o corruptor, ao obter vantagens financeiras, sociais ou fama, experimenta um prazer imediato. Essa descarga dopaminérgica pode anular a comunicação equilibrada com o córtex pré-frontal, que, se plenamente desenvolvido, ponderaria a situação e inibiria a ação corrupta. Conceitos como empatia, cooperação, ética e moral podem ser suprimidos por essa busca de recompensa.

A corrupção, um fenômeno histórico e cíclico, tem sido documentada em diversas sociedades. Biason e Livianu (2019), ao abordarem a corrupção na história brasileira, notam a alternância entre períodos de comportamento ético e de apropriação indevida. A prática da corrupção, portanto, parece ser uma escolha multifacetada, dependente do amadurecimento cerebral, do ambiente social e da condição humana individual. Ambientes sociais embrutecidos, com ausência de oportunidades e hostilidade, podem atuar como gatilhos cognitivos, levando indivíduos, especialmente aqueles com cérebros mais vulneráveis, a justificar a corrupção como forma de sobrevivência. A Professora Dra. Branca Ponce (2002) enfatiza: “Quanto mais carências têm os indivíduos, mais eles se embrutecem. No limite, quando lhes falta o essencial, a sua humanidade corre o risco de regredir ao puro estado de animalidade” (p. 18).

Uma vez que as primeiras ações corruptas são recompensadas e a punição é ausente, o ciclo compulsivo se instala, perpetuando a corrupção e criando uma elite beneficiada pelo empobrecimento social.

A jornada cognitiva sobre a corrupção nos revela que ela não é um fenômeno simples, mas o resultado de uma complexa interação entre predisposições genéticas, desenvolvimento cerebral, influências ambientais e escolhas individuais. Combater a corrupção exige, portanto, uma abordagem multifacetada: fortalecer a educação em valores éticos, promover a transparência na gestão pública, garantir a punição de atos ilícitos e construir um ambiente social que favoreça o desenvolvimento pleno do ser humano, com oportunidades e respeito.

Referências

  • Beaver, K. M., Barnes, J. C., & Boutwell, B. B. (2013). The heritability of criminal behavior: A meta-analysis. Journal of Quantitative Criminology, 29(1), 1-28.
  • Biason, R.; Livianu R. A corrupção na história do Brasil. São Paulo: Mackenzie, 2019.
  • Bocchi, R. M. B. Há corrupção na Educação? Relatos daqueles que vivem essa realidade no chão da escola pública brasileira. São Paulo: Appris, 2019.
  • Brasil. Decreto-Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília: Câmara dos Deputados, [1940]. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 15 maio 2021.
  • Greene, J. D., Sommerville, R. B., Nystrom, L. E., Darley, J. M., & Cohen, J. D. (2001). An fMRI investigation of emotional engagement in moral judgment. Science, 293(5537), 2105–2108.
  • Japiassú H.; Marcondes, D. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
  • Kandel, E. R. Mentes diferentes. O que os cérebros incomuns revelam sobre nós. Barueri: Manole, 2020.
  • Koenigs, M., Young, L., Hauser, M., Damasio, A., & Tranel, D. (2007). Damage to the prefrontal cortex increases utilitarian moral judgments. Nature, 446(7138), 908–911.
  • Meaney, M. J. (2010). Epigenetics and the biological definition of gene × environment interactions. Child Development, 81(1), 41–79.
  • Ponce, B. J. O humano, lugar do sagrado. São Paulo: Olho d’Água, 2002.
  • Rhee, S. H., & Waldman, I. D. (2002). Genetic and environmental influences on antisocial behavior: A meta-analysis of twin and adoption studies. Psychological Bulletin, 128(3), 495–520.
  • Sutherland, E. H. Principles of criminology. Chicago: J. B. Lippincott, 1939.
  • Szyf, M. (2013). DNA methylation and disease: Emerging aspects of a classic epigenetic paradigm. Trends in Molecular Medicine, 19(5), 350–362.

[1] Instrumento que o Congresso Nacional pode utilizar na fase de apreciação legislativa para influir no processo de elaboração do orçamento anual.

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