A mulher constituiu uma figura de controvérsia ao longo de vários períodos da história devido às restrições impostas por organismos legais e pela opinião pública. Foi, no entanto, durante os séculos XIX e XX, que a figura feminina e a sua representação social acompanharam as mudanças sociais caraterísticas da época.
A valorização do processo de sociabilidade e lazer notada durante o período em questão, fez com que o espaço de clausura, silêncio e trabalho, que por norma estaria associado à vivência da mulher, se ampliasse no usufruto do espaço público (Lopes, 2018, p.14). Este estaria essencialmente representado através da participação de atividades filantrópicas e de caridade, da presença em instituições de cariz cultural e ainda em festas e romarias da cidade.
Focando a atenção ao espaço urbano, é fácil afirmar que as transformações- ainda que lentas e discretas- se salientaram essencialmente nas mulheres citadinas e nas que pertenciam a classes médias-altas.
Para que se possa estabelecer um paralelo comparativo, a mulher do campo por sua vez, tinha uma maior exposição pública do que a mulher da cidade. Esta exposição estaria ligada ao desenvolvimento de trabalhos agrícolas, que acresciam às tarefas domésticas e cuidados com a família que já lhe seriam impostos. A par disto, os momentos de lazer seriam passados com danças e cantares no final da lavoura e serões familiares.
As tímidas transformações associadas à figura feminina escandalizavam muitos espíritos e o surgimento de comentários de linguagem satírica e depreciativa tornaram-se uma constante na época. Segundo Rui Cascão, senhores importantes da época defendiam que o dever da mulher era primeiro ser bela e depois ser estúpida e que só depois devia ter duas prendas cozinhar bem e amar bem. E ainda que o lugar da mulher era junto do berço e não na biblioteca (2011, p.231).
A mentalidade da sociedade conservadora da época é ainda notada através da análise de notícias publicadas no jornal vimaranense Gil Vicente. Na notícia em questão, o autor apesar de não identificado, abriu o artigo demostrando o seu respeito e consideração pela mulher. No entanto, referiu que esta nasceu para fazer companhia ao homem, a quem tinha obrigação de ajudar e para desempenhar o papel de educadora da sociedade futura. Apenas estas tarefas lhe diziam respeito, ao contrário da vontade mostrada na época ligada ao desempenho de funções no espaço público entre elas ligadas à política. Face a isto, o autor afirma que a mulher deixaria de o ser, ao ultrapassar o limite que lhe era imposto pela sociedade contemporânea[1]. Note-se que a notícia é referente ao século XX, ou seja poucos avanços se notava na sociedade portuguesa, sendo as vanguardistas, a nível europeu, a francesa e inglesa.
Dadas perspetivas gerais da mulher do espaço rural e urbano e a forma como a sociedade encarou as pequenas mutações notadas ao longos dos séculos XIX e XX, parece-nos pertinente referir a visão entre géneros. As mulheres eram diretamente associadas à esfera privada e a figura masculina à existência pública, escondendo as atividades femininas fora do lar e a intimidade vivida e sentida no masculino. Não era socialmente aceite que os homens exprimissem os afetos e o íntimo com a intensidade permitida às mulheres. Referimo-nos a título de exemplo aos rituais de passagem da vida privada (nascimento, casamento e morte, por exemplo), onde era frequente existir uma secundarização da figura masculina.
A sociedade europeia oitocentista, tentou efetivamente conter o poder crescente das mulheres, excluindo as de certos domínios de atividade, canalizando-lhes as energias para o doméstico ou mesmo para o social domesticado. Felizmente, algumas delas não desistiram e ao longo dos séculos XIX e XX lutaram para que aos poucos fossem adquirindo direitos e igualdade de género, conhecidos e respeitados de uma forma geral pela sociedade atual.
A função social de mãe e esposa que no início do século XIX estaria associada à mulher, vai se desfazendo progressivamente até que no seu final e durante todo a centúria de novecentos, as identidades femininas se multiplicam e esta passasse a ser vista como mãe, trabalhadora, e sobretudo emancipada.
Apesar de toda a evolução sentida, ainda muitas alterações são necessárias , honrando e dando continuidade a lutas pelos direitos feitas no passado! Um dos objetivos 17 ODS (Objetivos de desenvolvimento sustentável) da ONU passa por “Alcançar a igualdade de género”, cujos objetivos gerais se referem ao fim da discriminação, de formas de violência ou qualquer tipo de ato que torna a figura feminina vulnerável, trabalhando e evoluindo, para que todas as mulheres possam usufruir da igualdade e dos direitos que lhe assistem.
[1] HSMS- Gil Vicente, nº23, 16.03.1919, p.1
Bibliografia:
Cascão, Rui (2011). Em casa: o quotidiano familiar. In Mattoso. J. (2011). História da vida privada em Portugal. A época contemporânea. (pp. 244-45). Lisboa: Círculo de leitores.
Lopes, Maria Antónia (2017). Estereótipos de “a mulher” em Portugal dos séculos XVI a XIX (um roteiro). in Maria Antonietta Rossi (2017), Donne, Cultura e Società nel panorama lusitano e internazionale (secoli XVI-XXI). (pp. 27-44) Viterbo: Sette Città.
S.a. (1919). Gil Vicente. Hemeroteca da Sociedade Martins Sarmento. Guimarães.