A violação do espaço aéreo da Romênia por um drone russo em setembro de 2025 não deve ser interpretada como um incidente isolado ou meramente técnico. Ao contrário, trata-se de um episódio sintomático de uma transformação profunda na natureza dos conflitos contemporâneos, marcada pela ascensão da guerra híbrida, pela manipulação estratégica da ambiguidade e pela utilização de tecnologias não tripuladas como vetores de pressão geopolítica. O drone não provocou destruição nem vítimas, mas a sua presença silenciosa carregava uma mensagem política inequívoca: testar os limites da defesa euro-atlântica, explorar as vulnerabilidades do flanco leste da NATO e introduzir incerteza na cadeia de decisão estratégica ocidental.
Este tipo de incursão não é inédito, mas a frequência crescente e o contexto geopolítico em que ocorre — uma guerra prolongada na Ucrânia, uma NATO pressionada por múltiplas frentes e uma Rússia cada vez mais habituada a operar na “zona cinzenta” do direito internacional — tornam este episódio particularmente relevante. Drones, ao contrário de aeronaves tripuladas, oferecem vantagens assimétricas óbvias: são baratos, descartáveis, difíceis de rastrear e — sobretudo — permitem a negação plausível. Esta combinação transforma-os em instrumentos perfeitos para operações de provocação com elevado impacto político e baixo risco militar.
A entrada do drone russo no espaço aéreo romeno teve um efeito triplo. Em primeiro lugar, revelou lacunas persistentes na vigilância aérea e na interoperabilidade entre os membros da NATO no leste europeu. Apesar de avanços técnicos desde 2022, sobretudo após a invasão da Ucrânia, a coordenação operacional ainda depende de um complexo sistema multinível de comunicações, respostas autorizadas e validações políticas. A mobilização imediata de caças F-16 romenos foi uma demonstração de prontidão, mas também um lembrete de que a resposta militar é apenas uma parte do quebra-cabeça da segurança regional.
Em segundo lugar, o incidente testou a arquitetura legal e diplomática da NATO. Embora a Romênia tenha aprovado em fevereiro de 2025 uma legislação que autoriza o abate de drones intrusos em caso de ameaça direta, a decisão de abater um aparelho estrangeiro — mesmo não armado — envolve riscos de escalada com Moscovo. Um abate poderia ser interpretado como um ato hostil, desencadeando uma resposta russa e, potencialmente, colocando em movimento mecanismos mais complexos da Aliança, como o Artigo 5.º. A hesitação estratégica não é fraqueza, mas sim cálculo: a NATO encontra-se hoje diante do dilema clássico entre contenção e dissuasão.
Neste contexto, a guerra híbrida emerge como a principal moldura analítica para compreender os desdobramentos desta incursão. A Rússia, ao longo da última década, refinou uma doutrina baseada na ambiguidade, na pressão psicológica e na saturação informacional. O drone é apenas um elemento visível de um tabuleiro mais vasto que inclui desinformação, ciberataques, sabotagem energética e influência política. A fronteira entre a guerra e a paz deixou de ser nítida. E é precisamente esta ambiguidade que confere vantagem ao agressor, enquanto coloca o defensor num ciclo constante de reação e adaptação.
A Romênia, enquanto pivô estratégico no Mar Negro, representa um elo frágil e, simultaneamente, vital na defesa euro-atlântica. Com fronteiras diretas com a Ucrânia e proximidade com a Moldávia e a Transnístria, o país está exposto a múltiplas pressões — militares, energéticas e diplomáticas. Desde 2022, Bucareste tem intensificado a sua cooperação com a NATO, acolhendo tropas estrangeiras, modernizando infraestruturas e aumentando o investimento em defesa. No entanto, a pressão de Moscovo é contínua, variada e difícil de antecipar. Drones são apenas a ponta do iceberg.
É precisamente neste ponto que se evidencia o paradoxo da dissuasão moderna. Por um lado, a NATO precisa de projetar força e prontidão para desencorajar ações hostis. Por outro lado, qualquer demonstração excessiva pode ser interpretada como escalada e alimentar o ciclo de provocações. A resposta ao incidente de setembro foi diplomática, discreta e coordenada, mas, para alguns analistas, insuficiente como sinal de firmeza. Moscovo observa cuidadosamente cada hesitação, cada debate interno entre os aliados, cada ambiguidade legal e explora estas brechas para reforçar a sua narrativa de resistência ao “cerco ocidental”.
A utilização de drones pela Rússia deve ser compreendida não apenas em termos tecnológicos, mas simbólicos. O drone representa a capacidade de Moscovo de “estar presente” mesmo quando oficialmente ausente. Ele simboliza uma forma de projeção de poder que evita os custos humanos e políticos de uma incursão tripulada, enquanto provoca alarme, testes e respostas ocidentais. Drones são hoje instrumentos de geopolítica emocional, que operam tanto no domínio físico quanto no psicológico.
O futuro da segurança no flanco oriental da NATO dependerá da capacidade de adaptação a esta nova gramática de conflito. Isto inclui não apenas reforço tecnológico e militar, mas sobretudo inteligência estratégica, coesão política e preparação para operar em cenários de ambiguidade. É preciso desenvolver protocolos específicos para lidar com drones não identificados, estabelecer linhas de comunicação mais ágeis com Moscovo e investir em sensores, inteligência artificial e integração de dados. Mais ainda, será essencial comunicar de forma eficaz com a opinião pública, explicando a natureza dos riscos, as opções estratégicas e os limites da resposta militar tradicional.
A estabilidade regional requer também reforço do papel da União Europeia como ator de segurança. Embora a NATO seja o principal garante da defesa coletiva, a UE pode e deve contribuir com capacidades civis, políticas e diplomáticas para lidar com os múltiplos vetores da guerra híbrida. A defesa das fronteiras aéreas não se faz apenas com radares e mísseis, mas com resiliência institucional, literacia digital e coesão social.
Por fim, é necessário reconhecer que o incidente na Romênia se inscreve numa guerra de longa duração, com epicentro na Ucrânia, mas cujos efeitos transbordam para todos os vizinhos da Rússia. A fronteira entre países NATO e territórios sob influência russa tornou-se um campo de testes para novas formas de conflito. A Roménia, a Polónia, os Estados Bálticos — todos estão, de algum modo, no epicentro de uma disputa geopolítica que combina drones, desinformação, sabotagem e diplomacia coerciva. Cada incursão aérea, cada sabotagem cibernética, cada blackout informacional é uma peça deste jogo maior.
A invasão aérea invisível de setembro de 2025 é, portanto, reveladora não apenas da fragilidade das defesas aéreas, mas sobretudo da complexidade dos desafios contemporâneos de segurança. A resposta euro-atlântica deve ser firme, inteligente e coordenada, sob pena de deixar espaço para novas formas de agressão não convencional. O drone russo não matou ninguém, mas expôs um sistema que ainda procura adaptar-se à lógica de uma guerra sem linhas de frente definidas, sem declarações formais e com múltiplos campos de batalha simultâneos — do céu à internet, das fronteiras físicas às redes sociais.
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