

Na era da Inteligência Artificial, a viagem tornou-se uma experiência pré-programada, onde os algoritmos não só sugerem o caminho, como moldam o próprio desejo de partir.
Este artigo propõe uma reflexão urgente: que tipo de turistas queremos ser num mundo onde o erro, a surpresa e a dúvida estão a desaparecer? E que ética da viagem podemos (re)construir num tempo em que já não perguntamos… porque a resposta nos chega antes da pergunta?
Quando os algoritmos escolhem por nós: ainda estamos a viajar?
A Inteligência Artificial no Turismo: Estamos a viajar ou a ser viajados?
Por Élvio Camacho, Universidade da Madeira / CITUR, ISAL
Já não perguntamos “para onde ir?”.
Os algoritmos fazem isso por nós — e, muitas vezes, antes mesmo de sabermos que queremos partir.
Em poucas décadas, passámos de planear viagens com mapas e guias de bolso para seguir itinerários desenhados por aplicações. O desejo de descobrir, que sempre moveu o ato de viajar, está agora mediado por plataformas digitais. Google Travel, Booking.com, TripAdvisor e tantas outras deixaram de ser simples ferramentas. Tornaram-se intermediários, curadores, e, em muitos casos, decisores silenciosos.
Se antes partíamos com perguntas — “o que há além do horizonte?”, “o que nunca vi?” — agora seguimos sugestões. Mas o que perdemos quando trocamos a dúvida pela eficiência? Estaremos mesmo a viajar… ou apenas a ser viajados?
A viagem como algoritmo
Viajar sempre foi uma metáfora da liberdade. Um gesto de escolha. Hoje, porém, essa escolha é cada vez mais condicionada por mecanismos invisíveis. Os algoritmos não apenas respondem às nossas preferências — antecipam-nas, modelam-nas, e muitas vezes criam-nas. A Inteligência Artificial (IA) introduziu uma nova camada no turismo: a da previsibilidade personalizada.
Segundo Ma (2024) e Ferràs et al. (2020), os sistemas actuais de IA no turismo utilizam gigantescos volumes de dados históricos e comportamentais para oferecer aquilo que denominam “experiências optimizadas”. A ideia é simples: aumentar a probabilidade de satisfação. Mas essa “satisfação” é medida por cliques, avaliações, padrões de consumo. E o risco é que, ao maximizar a comodidade, se minimizem a surpresa, o desvio e o imprevisto — ou seja, aquilo que realmente torna uma viagem memorável.
A Organização Mundial do Turismo (OMT) destaca que a IA tem o potencial de transformar estruturalmente o sector, promovendo personalização, eficiência e sustentabilidade. Segundo o relatório “AI for Good in Tourism” (OMT, 2024), a IA poderá contribuir com até 19,9 biliões de dólares para a economia global até 2030, enquanto a IA generativa sozinha pode gerar entre 2,6 a 4,4 biliões por ano.
O World Travel & Tourism Council (WTTC), em colaboração com a Microsoft, reforça esta ideia no seu relatório “AI in Action”, apontando exemplos de sucesso na gestão de preços, personalização de experiências e redução de impactos ambientais (WTTC, 2024). Contudo, também alerta para desafios prementes como a escassez de profissionais qualificados e a ausência de estratégias formais de implementação.
O que está em causa não é apenas a eficiência. É a transformação da viagem num produto altamente curado, onde cada passo, cada visita, cada refeição é previamente avaliada, filtrada e servida numa bandeja digital. Um percurso sem falhas. Mas também, talvez, sem alma.
Uma viagem feita de dados
Importa lembrar: a IA não inventa do nada. Ela aprende connosco, com os nossos rastros digitais. Cada pesquisa, clique, partilha e avaliação entra nos seus sistemas. Somos simultaneamente criadores e criados pelo algoritmo. E este ciclo levanta uma questão ética fundamental: quem está a guiar quem?
Os dados comportamentais são, como lembra a literatura, uma mina de ouro para os gigantes tecnológicos. Como demonstram Guerra, Gosling e Carvalho (2015), 78% dos turistas reconhecem que plataformas digitais influenciam diretamente a escolha do destino. Ou seja, a escolha já não é apenas nossa. É mediada, induzida, até manipulada.
Outros estudos (Coelho, Bairrada & Van Dúnem, 2020) mostram como a imagem digital de um destino condiciona diretamente a experiência e a satisfação do turista. Uma praia pode parecer paradisíaca online e desiludir ao vivo — ou o contrário. A experiência torna-se uma comparação constante entre expectativa digital e realidade vivida. Entre a simulação e o real.
A morte da dúvida: para onde desapareceu o improviso?
Antes, as viagens envolviam mapas dobrados, decisões de última hora, lugares onde nos perdíamos — e onde acabávamos por descobrir o que não procurávamos. Hoje, viajamos com tudo cronometrado. Dormimos onde nos disseram, comemos o que foi avaliado em estrelas, visitamos o que foi “trending”. A dúvida desapareceu do percurso.
Mas é precisamente na dúvida que começa a viagem. Não na certeza.
A homogeneização da experiência turística, promovida por sistemas de IA, transforma o imprevisível em desconforto a evitar, em vez de o valorizar como potencial de descoberta. A aventura é substituída por conforto. A curiosidade por confirmação.
Literacia algorítmica: a nova competência do viajante
Neste novo cenário, é urgente desenvolver o que autores como Sambasivan et al. (2021) e Tsamados et al. (2022) chamam de literacia algorítmica. Mais do que uma competência técnica, trata-se de uma postura crítica. Um novo tipo de consciência sobre os mecanismos que moldam as nossas escolhas — e, por extensão, a nossa forma de estar no mundo.
Saber que um restaurante aparece no topo não por ser o melhor, mas porque pagou para ali estar. Que um destino pode ser promovido por interesses comerciais, e não culturais. E que os dados que alimentam essas decisões refletem preconceitos, estereótipos e desigualdades — como alerta Noble (2018).
Sem esta literacia, arriscamo-nos a tornar-nos consumidores passivos da experiência turística, iludidos pela promessa de autenticidade.
A autenticidade simulada
Na era digital, até a autenticidade pode ser encenada. Restaurantes “caseiros”, quartos “com alma”, tours “como um local” são, frequentemente, versões estilizadas da realidade, formatadas para parecer reais — mas desenhadas com base em padrões de consumo global.
A análise clássica de MacCannell (1976) sobre a “encenação da retaguarda” ganha aqui nova força: a autenticidade não é descoberta, é exibida. Uma performance para o olhar do turista, cuidadosamente editada para parecer espontânea.
Wang (1999), ao distinguir entre autenticidade objetiva (os factos) e existencial (a transformação interior), dá-nos uma chave importante: o que está em risco não é apenas o “real”, mas a capacidade do turismo nos transformar. E essa transformação exige desconforto, confronto com o outro, choque cultural. Algo que os algoritmos tendem a evitar — porque não é facilmente quantificável… nem vendável.
O risco da viagem sem mundo
É importante reconhecer: a IA pode, sim, trazer benefícios concretos. Segundo a OMT (2024) e o WTTC (2024), o impacto económico da IA no turismo pode atingir os 19,9 biliões de dólares até 2030. A IA generativa, por si só, poderá gerar anualmente entre 2,6 e 4,4 biliões. Além disso, a tecnologia tem potencial para gerir fluxos turísticos, reduzir pressões ambientais, promover destinos invisibilizados.
Mas números não bastam. A eficácia económica não pode ser o único critério para avaliarmos o papel da IA. A questão não é apenas como a usamos. É, sobretudo, o que deixamos de perguntar quando confiamos demasiado nas suas respostas.
Porque viajar é mais do que seguir um percurso. É colocar questões. É procurar o que ainda não tem nome. É perder-se — e reencontrar-se. É, sobretudo, um gesto de liberdade interior. E essa liberdade exige o direito à dúvida.
Quem dirige a viagem?
A grande pergunta não é se devemos usar IA no turismo. Essa discussão está ultrapassada. A verdadeira questão é quem dirige a viagem. Se somos nós, com a nossa curiosidade, os nossos silêncios e desvios — ou se é um sistema de recomendação que, embora eficaz, não tem corpo, nem história, nem desejo.
O verdadeiro turista do futuro não será aquele que segue o roteiro mais eficiente. Será aquele que ousa sair dele. Que aceita o desconforto do desconhecido. Que opta, conscientemente, por resistir à resposta fácil e cultivar a pergunta inesperada.
Porque, no fundo, viajar é isso: reencontrar o mundo com olhos inquietos. E nenhum algoritmo pode fazer isso por nós.
Conclusão: a pergunta que resta
No mundo contemporâneo, talvez a pergunta mais urgente já não seja “onde vamos?”, mas “quem está a decidir o caminho?”. Esta decisão — outrora nascida do impulso interior de descoberta — é agora, cada vez mais, resultado de uma equação invisível entre dados, previsibilidade e lucro. As escolhas parecem nossas, mas foram preditas, filtradas e embaladas para consumo.
Neste cenário, reaprender a viajar implica reaprender a perguntar. Não apenas onde ir, mas porquê ir. Com que intenção, com que liberdade, com que margem para o erro, para o encontro fortuito, para a transformação inesperada. Significa recuperar a viagem como experiência ética, sensível e relacional — e não apenas como percurso eficiente.
Essa nova ética do viajar exige, paradoxalmente, resistir à perfeição sedutora que os algoritmos nos oferecem. Questionar o conforto digital como critério máximo de valor. Recusar a lógica de que mais previsibilidade significa melhor experiência. O verdadeiro sentido da viagem não reside na confirmação das nossas expectativas, mas na sua suspensão — no espaço aberto do que ainda não sabemos.
Porque nenhuma Inteligência Artificial, por mais avançada que seja, pode viver o risco da descoberta. Pode prever, orientar, automatizar… mas não pode duvidar. Não pode hesitar. Não pode maravilhar-se.
Só nós podemos escolher o caminho incerto. Só nós podemos aceitar não saber.
E talvez seja justamente aí — no gesto de questionar, de não seguir, de escutar o silêncio entre uma recomendação e outra — que a viagem começa de verdade.
Referências
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