O mundo assistiu com emoção e atenção ao noticiário internacional nos últimos dias. O motivo? O tão esperado cessar-fogo na Faixa de Gaza, um território devastado por bombardeios que, finalmente, parece ter um momento de trégua. Mas a paz é mesmo uma realidade ou apenas uma ilusão.


O que mais chama a atenção nesse cenário é o contraste com o passado recente. O presidente americano Donald Trump, outrora lembrado por ações controversas como acusações de conduta antidemocrática, perseguições ideológicas e pressões acadêmicas, emerge agora como o principal responsável por essas negociações. Esse “papel” de pacificador é um lembrete de que a política internacional pode ser cheia de reviravoltas.
Não se engane com as manchetes de “paz”. O que se estabeleceu é um cessar-fogo, um acordo que pode ser frágil e um alívio temporário. A situação histórica entre Israel e Palestina não foi resolvida, e as cicatrizes de meses de conflito ainda estão muito visíveis.
As imagens dos cartazes de reféns israelenses que cobriram as cidades por meses ainda estão frescas na memória. Mais de 240 pessoas, de bebês a idosos, foram sequestradas no ataque brutal do Hamas em 7 de outubro de 2023. Agora, o ciclo se fecha com a libertação dos últimos sobreviventes, e o símbolo dessa celebração é o sorriso de quem finalmente reencontra a família. Do outro lado, centenas de palestinos também foram libertados das prisões de Israel, e milhares de civis podem, enfim, voltar para suas casas, ou o que sobrou delas, em uma Faixa de Gaza devastada.
O contraste entre esperança e devastação
O presente é um misto de esperança e devastação. O passado, no entanto, é sombrio: mais de 1.200 mortos no ataque terrorista e 67 mil na resposta israelense, incluindo milhares de crianças, em um cenário que entidades como a Anistia Internacional e a ONU descrevem como um genocídio. E o futuro? É a parte mais incerta.
Apesar dos sorrisos, muitos reféns morreram. Seus corpos, quando encontrados, serão devolvidos às famílias, mas grande parte do território palestino já não existe mais. A devolução desses corpos é um dos itens do acordo de paz “assinado pelas partes” e enquanto todos os corpos não forem devolvidos, o acordo não é finalizado.
A paz, na verdade, parece uma miragem. Não há sinais de que o Hamas vá depor as armas, nem que Israel vá sair de metade do território de Gaza. A reconstrução do enclave é uma incógnita, e a sua administração, um desafio imenso.
Recentemente, notícias sobre o cessar-fogo ilustraram a fragilidade da situação:
- Israel avisou à ONU que decidiu limitar a entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza depois que o grupo terrorista Hamas não devolveu os corpos de todos os reféns mortos após o ataque de 7 de outubro de 2023. As informações foram divulgadas pela agência de notícias Reuters nesta terça-feira (14). (Portal G1 — 14/10/2025)[1]
- Em meio a soltura de reféns, embate interno entre Hamas e clã palestino deixa mortos em Gaza. Ao menos 27 pessoas morreram no sábado (11/10) em confrontos na Cidade de Gaza entre forças de segurança do Hamas e membros armados do clã da família Dughmush. As mortes ocorreram após uma operação do Hamas para prender integrantes do clã, em um dos embates internos mais violentos desde a recente retirada de tropas israelenses de Gaza. (BBC News Brasil — 14/10/2025)[2]
- O Exército israelense afirmou nesta terça-feira (14) que atirou contra “vários suspeitos” que violaram as linhas de suas tropas na Faixa de Gaza. Cinco pessoas morreram no incidente, afirmaram autoridades de saúde palestinas. (Portal G1 — 14/10/2025)[3]
- Membros mascarados do Hamas executam grupo em Gaza em meio a cessar-fogo. Relatos de violência foram amplamente compartilhados, com um vídeo mostrando oito pessoas vendadas sendo executadas em uma praça na Cidade. (CNN Brasil — 15/10/2025)[4]
Apesar de tudo, o momento atual é melhor do que o de um mês atrás. É um respiro, um alívio, mas não o fim. O caminho à frente é longo e cheio de obstáculos. E a verdadeira paz, parece longe de ser conquistada.
Em artigo publicado na Revista brasileira Piauí, escrito originalmente por Linda Kinstler para o The Ideas Letter, um projeto da Open Society Foundations, e traduzido por Isa Mara Lando, a autora afirma que “assim como o Holocausto definiu o século XX, o extermínio dos palestinos talvez seja o fato inaugural de uma nova — e terrível — era histórica”.[5]
Fatos e narrativas
Paralelo aos fatos, há uma realidade ainda mais cruel e infelizmente sem prazo de validade. Falo da construção livre de narrativas para as redes sociais.
Em meio a notícias de grande repercussão internacional, é comum que as pessoas selecionem apenas recortes de acontecimentos, “printem” imagens ou opinem com base em emoções, opções políticas ou até mesmo no desejo de “viralizar”. Isso cria as chamadas “narrativas” que, descoladas do contexto histórico, contam impressões empobrecidas dos fatos.
A figura de Donald Trump, por exemplo, virou story ou até foto de perfil de usuários das redes sociais, com frases de agradecimento e exaltação. Extremistas de direita espalhados pelo mundo elegeram o presidente americano como seu “presidente favorito” adotando a bandeira americana como sua. A narrativa torna-se mais importante que o contexto, e a leitura crítica dos fatos é deixada de lado. O fato histórico vira um produto líquido, útil, consumível e descartável.


Entre as diversas narrativas, há algumas extremamente ameaçadoras, como as que sugerem que o conflito é uma encenação. Embora a guerra seja real e as perdas humanas sejam devastadoras, essas teorias da conspiração insistem que os bombardeios e os mortos são falsos, criados para fins políticos ou financeiros. Essa é uma das narrativas mais perigosas, pois desumaniza as vítimas e nega o sofrimento de milhares de pessoas, servindo apenas para desinformar e incitar a polarização.
Outro exemplo de narrativa descompromissada com a realidade é a que transformou Donald Trump em um “pacificador solitário” do Oriente Médio, como se suas negociações tivessem sido a única força motriz por trás do cessar-fogo em Gaza. Essa narrativa ignora o contexto histórico, as complexas relações diplomáticas e a pressão de diversos atores internacionais que contribuíram para o acordo.
O desafio da contextualização
Este artigo, ao destrinchar a complexa realidade por trás do cessar-fogo em Gaza, nos leva a uma reflexão mais profunda. Em um mundo onde a informação é instantânea e as redes sociais dominam, somos constantemente bombardeados por narrativas simplistas e descontextualizadas. O episódio de Trump e o cessar-fogo é apenas um exemplo de como fatos complexos são “recortados” e transformados em conteúdo superficial, muitas vezes com o objetivo de gerar engajamento, “likes” e, em última instância, lucro.
A cultura da narrativa, movida pela necessidade de viralizar, empobrece nossa capacidade de análise e nos afasta da realidade. Ela nos convida a consumir informações de forma líquida e descartável, sem o compromisso de buscar o contexto histórico e a leitura crítica. Sobre a liquidez dos novos tempos, o sociólogo Zygmunt Bauman[6] a caracteriza pela fluidez, instabilidade e transitoriedade das relações sociais, econômicas e afetivas, gerando insegurança, ansiedade e uma busca por satisfação imediata em detrimento de compromissos de longo prazo.
É urgente que voltemos a valorizar a leitura atenta, o pensamento crítico e o compromisso com a contextualização. A superação da “cultura do like” e da irresponsabilidade das narrativas é um dos maiores desafios do nosso tempo. Somente ao nos dedicarmos a uma compreensão mais profunda, podemos realmente participar de debates significativos e contribuir para um mundo menos polarizado e mais informado. A verdadeira paz, tanto no Oriente Médio quanto em nossa vida digital, começa com o compromisso de buscar a verdade, não apenas a versão que nos convém.
[1] Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/10/14/israel-decide-limitar-envio-de-ajuda-humanitaria-para-gaza-apos-hamas-nao-devolver-corpos-de-refens-diz-agencia.ghtml — Acesso em 14/10/2025.
[2] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0mxnrv14n7o — Acesso em 14/10/2025.
[3] Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/10/14/israel-diz-que-atirou-palestinos-cessar-fogo-gaza.ghtml — Acesso em 14/10/2025.
[4] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/membros-mascarados-do-hamas-executam-grupo-em-gaza-em-meio-a-cessar-fogo/ — Acesso em 12/10/2025.
[5] Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/quem-seremos-depois-de-gaza/?utm_source=pushnews&utm_medium=pushnotification — Acesso em 15/10/2025.
[6] Zygmunt Bauman foi um sociólogo, filósofo, professor universitário e teórico social polonês, professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia, referência em estudos sobre pós-modernidade e criador do conceito de modernidade líquida



