Na última semana de 2020 o autor deste texto publicou uma reflexão sobre a importância de não esquecer o ano que terminava, usando como pretexto a palavra do ano. Ao contrário do observado em outros países, a palavra de 2020 em Portugal não foi ‘pandemia’, ‘COVID-19’, ou ‘confinamento’. Com alguma surpresa, a palavra eleita pela Porto Editora foi ‘saudade’. (No Brasil a consultora Cause em conjunto com o Instituto Ideia Big Data escolheram o vocábulo ‘luto’, para o ano que findou).
A palavra saudade foi examinada num texto publicado em A Pátria em julho de 2019. Aí era definida como “um estado emocional de nostalgia ou melancolia profunda, dirigido a alguém ou algo que está ausente, mas de quem ou que se gosta”. No site da Porto Editora, escreve-se que saudade “é um sentimento muito presente como consequência do distanciamento físico e, também, da rutura em relação às rotinas mais simples e banais”, e acompanha-se a página com uma foto de uma menina, a abraçar e a beijar uma idosa, cuja face transparece candura e felicidade. A imagem é singela, pois representa um ato de amor entre avó e neta. Mas é também dramática, pois relembra aquilo que 2020 retirou às pessoas: as tais rotinas que, como se verá em seguida, têm pouco de simples e banais.
Os cumprimentos entre os povos variam substancialmente, mas todos têm o mesmo objetivo: o encontro com o outro, e o despedir-se do outro. As saudações de encontro e de afastamento são quase sempre compostas por formas verbais, como “olá”, “bom dia”, e “viva”, para o encontro, e “tchau”, “adeus”, e “até breve”, para o afastamento. Algumas culturas acompanham as expressões faladas com manifestações corporais, como o abraço, o beijo, o toque no ombro ou no braço, e o aperto de mão. Os povos latinos estão entre aqueles que engrandecem as saudações orais com sinais físicos mais ou menos profusos. O cumprimento entre os latinos não é apenas de coração para coração, como permite a palavra; é também entre corpos, como faz o beijo e o abraço.
No ano um da pandemia as pessoas nos povos latinos não puderam abraçar-se, apertar as mãos, ou beijar-se. No primeiro mês do ano dois da pandemia a componente corpórea do cumprimento também está comprometida, e tudo aponta para que a situação se prolongue por alguns meses.
Não admira, pois, a saudade que se tem do beijo, do abraço, e do apertar de mãos. O tocar de cotovelos, o abanar de mãos no ar nos encontros por plataformas sociais, ou o levantar do braço (a relembrar os gatos japoneses maneki-neko, que se encontram à entrada de algumas lojas de asiáticos), são pobres substitutos para as ancestrais formas usadas pelos latinos quando se reencontram ou se encontram pela primeira vez.
Nada há de simples ou banal nas formas de cumprimento citadas. Pelo contrário, elas obedecem a regras e costumes complexos que são transmitidos de geração em geração. Atente-se aos japoneses, cuja saudação é feita com um inclinar do corpo para diante. Para um observador externo, a inclinação aparenta ser sempre igual, mas de facto assim não é. Na saudação nipónica também jogam um importante papel comunicacional o ângulo da inclinação, a posição das mãos junto ao corpo, e o contato visual, entre outros elementos.
Entre as gentes latinas existem variações nas saudações físicas. Tome-se o aperto de mão, comum em muitas nações para além das latinas. Num curioso artigo sobre a ciência do aperto de mão (Fernandes, sem data), a autora explica que o gesto tem como objetivo transmitir um sinal de amizade entre pessoas, fundamental para estabelecer confiança, seja ela no seio de relações negociais ou meramente interpessoais. Mas existem várias formas de apertar uma mão, como propõe a autora: o aperto de mão aberto, o frouxo, o hesitante, o distante…
Independentemente do carácter mais ou menos científico da taxonomia de Fernandes, a verdade é que um aperto de mão carrega consigo não apenas um sinal de amizade, mas também significados adicionais consoante a intensidade, firmeza, duração, e várias outras variáveis envolvidas, como o cruzar de olhares, e o usar a segunda mão para fechar a mão do outro numa constrição a 360º.
Veja-se agora o abraço. Ao contrário do aperto de mão, o abraço também existe em forma escrita, sendo habitual portugueses e brasileiros despedirem-se em mensagens por email ou outras plataformas com “um abraço”, ou o seu diminutivo “um abc”. O abraço exige uma superfície maior do corpo do que o aperto de mão, e por conseguinte uma maior intimidade e intensidade na sua execução. Também é apanágio de outros povos para além dos latinos, sendo frequente, por exemplo, entre os norte-americanos. Homens abraçam-se entre si, mulheres abraçam-se entre si, e homens e mulheres também se abraçam entre si. As variantes são muitas, e amiúde são incluídas outras cortesias, como o beijo na face. Entre algumas culturas árabes, pratica-se o conjunto completo: aperto de mão, abraço, e beijo na face, sobretudo entre homens não familiares entre si.
Num artigo de Light, Grewen, e Amico, de 2005, mostra-se que um aumento de frequência de abraços conduz a um incremento nos níveis de oxitocina e a uma redução da tensão arterial, pelo que se conclui que existe um efeito terapêutico no abraço. O movimento “Free Hugs” (“Abraços Grátis”), iniciado por Juan Mann (pseudónimo) em 2004, e popularizado pela banda australiana Sick Puppies, tem chamado a atenção para esta poderosa forma de afeto entre seres humanos.
Por fim, a mais sublime e íntima forma de cumprimento: o beijo na face. O beijo na face é um sinal de afeto puro, servindo o propósito da reativação ou da criação de uma relação. O beijo na face é simétrico, pode ser realizado no ar ou com contato, e é dado entre mulheres, entre mulheres e homens, e entre adultos e crianças. Nas culturas islâmicas o beijo entre homens e mulheres é impróprio; em Itália é frequente homens praticarem o ritual; e em Portugal e Espanha o beijo entre homens é comum entre familiares. Pode ser 1 beijo apenas (na Colômbia e Argentina), dois (Espanha, Portugal), três (Bélgica), ou quatro (em certas partes de França).
2020 deixa saudades do aperto de mão, do abraço, e do beijo, vistos como potenciais transmissores do vírus, que avança de modo galopante mesmo com o aprisionamento das saudações abordadas. Os seres humanos são seres sociais, mas também seres físicos. A saudação oral tem cumprido a sua função nos últimos meses, mas aquilo de que todos têm mesmo saudade é de um aperto de mão, de um abraço, e de beijar outras pessoas. Esperemos que em 2021 estas formas de afeto informal possam voltar a ser uma prática de saudação entre pessoas.
Referências
Fernandes, F. (sem data). A “ciência” do aperto de mão, disponível em: https://www.algarveprimeiro.com/d/a-ciencia-do-aperto-de-mao/16464-47
Light, K.C., Grewen, K.M. & Amico, J.A. (2005). More frequent partner hugs and higher oxytocin levels are linked to lower blood pressure and heart rate in premenopausal women. Biological Psychology, 69(1), 5-21.