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E depois da cólera? O desconfinamento e o usufruto do lazer em Guimarães do século XIX

E depois da cólera? O desconfinamento e o usufruto do lazer em Guimarães do século XIX

O século XIX ficou marcado pela industrialização, e consequente advento das sociabilidades e lazer, a par do surgimento de vários surtos epidémicos em Portugal. Além das habituais epidemias como a febre amarela, varíola e peste, a Europa viu surgir pela primeira vez outras doenças, como a cólera que rapidamente se manifestou por todo mundo. A cólera teve especial realce devido à elevada taxa de mortalidade que causou, ainda que existam autores que defendam que outras moléstias ultrapassaram o número de mortes desta enfermidade.

A moléstia atingiu Portugal várias vezes, ao longo do século XIX, ainda que de forma pouco homogénea, afetando de modo diferenciado as várias regiões. No geral, as regiões fronteiriças foram em todos os períodos epidemiológicos as mais afetadas. Guimarães também não conheceu todos os surtos de cólera da mesma forma. Na década de 30, a epidemia atingiu a cidade ainda que de forma discreta.

Numa primeira fase as medidas de confinamento e prevenção desenrolaram-se unicamente a nível coletivo, através da organização de cordões sanitários, a imposição de lazaretos e postos de desinfeção nas zonas fronteiriças do país. No entanto, estes repercutiam elevados custos, tanto económicos como pessoais, e a sua eficácia foi dificultada devido ao incumprimento da população, pois entendiam ser uma medida que retirava os homens dos trabalhos agrícolas e oficinas para vigiarem as fronteiras. A cólera mudou a forma como outras doenças passaram a ser encaradas por parte das instituições políticas. Por isso, houve um maior incentivo para a tomada de medidas que passavam pelo desenvolvimento da saúde e higiene pública e pessoal.

O conceito de sociabilidades defende que as pessoas enquanto seres sociáveis, constroem comportamentos coletivos, relações de afinidade, sensibilidades e correspondências múltiplas estabelecendo assim formas de relacionamento e de identidades sociais. Desta forma, as regras de confinamento, tiveram também as suas consequências no que toca à ocupação dos tempos livres da população portuguesa, através da restrição de eventos festivos e culturais e da proibição de feiras e mercados por exemplo, voltando estas ao seu funcionamento normal e de forma gradual no período pós epidémicos de cada uns dos surtos coléricos.

A nível local, aquando do primeiro surto colérico, que se desenvolveu entre 1833 e 1836, procurava-se consciencializar a população para a necessidade de limpeza dos espaços públicos; a fiscalização de locais de venda de bens alimentares e até os cuidados a ter com o enterramento de cadáveres. Ainda em contexto religioso estão os relatos de João Lopes de Faria na obra Efemérides Vimaranenses, de procissões religiosas que se desenvolveram no período durante e após o primeiro surto de cólera, mostrando que a população vimaranense se aliou aos ritos religiosos, transcritos pelos momentos de prece coletiva para que a misericórdia divina evitasse o retorno da doença. Em agosto de 1833 é descrito, o princípio das preces na igreja de S. Sebastião, por causa da cólera que já tinha manifestado na villa, mas atacado apenas algumas mulheres. O autor descreve ainda outro exemplo de sociabilidade de cariz religioso, meses depois da cólera ter grassado na cidade de Guimarães, em agosto de 1834, onde é mencionada a procissão de Terceiros Franciscanos que depois de passar por alguns terreiros e ruas da villa, recolheu à capela de S. Roque da Serra, de onde saiu por causa da cholera morbus que tinha grassado nesta villa em tempos passados.

As sociabilidades religiosas tiveram um peso enorme na ocupação dos tempos livres da população minhota e Guimarães não foi exceção à regra, não só no período de celebração de festividades dedicadas a devoção de santos, mas também em tempos anómalos caraterizados pela propagação de doenças de cariz epidémico que causavam o medo e pavor à sociedade.

A segunda vaga de cólera atingiu o território português na década de 50. O segundo surto foi noticiado na imprensa vimaranense, apenas na sua fase final, mais precisamente durante 1856 através da publicação de notícias nos jornais. As notícias publicadas foram em número reduzido e com informação algo vaga. Além de se mencionar a necessidade de não serem esquecidas as medidas sanitárias, salienta-se a inexistência de casos de cólera na cidade no mês de janeiro, situação que não demorou muito tempo, devido ao retorno da doença em setembro do mesmo ano.

Apesar do impacto que o surto teve na cidade, a imprensa vimaranense mostra que no período após o mesmo, além dos incentivos à tomada de medidas de prevenção, a população vimaranense retorna à rotina normal, que incluía, além da rotina laboral, momentos de lazer e proveito dos tempos livres. A 9 de setembro de 1856, o jornal A Tesoura de Guimarães descreve a romaria em homenagem à Senhora de Porto d’Ave e a enchente de romeiros em Guimarães de saiam e voltavam à cidade. Na notícia é ainda notório tom crítico relativo ao ajuntamento e circulação de pessoas entre cidades, e sobretudo no que toca à satisfação e contentamento com que esta gente do Minho, que habita nos campos, toca, canta e dança nas praças públicas, enquanto que nas regiões centro e sul do país os flagelos da fome e peste seriam uma realidade.

A frequência na publicação de notícias sobre momentos que se inseriam no desenvolvimento do processo das sociabilidades da população vimaranense foi cada vez maior após a publicação de A Tesoura de Guimarães em 19 de setembro de 1856 relativa à diminuição do número de casos de doentes atacados pelas moléstias que na altura grassavam na cidade. Desde bailes de homenagem a figuras públicas importantes à celebração de festividades religiosas, várias são as publicações nos jornais de Guimarães durante o mês de outubro de 1856. Veja-se, por exemplo o baile, noticiado pelo A Tesoura de Guimarães em 7 de outubro, organizado por Bernardo de Morais Almada e Castro, figura política de renome na cidade, conhecido como 1º Conde da Azenha, muito concorrido e animado, com música e chá para os convidados.

O retorno da cólera a Portugal não tardou, e foi confirmada mais uma vez pelo jornal Religião e Pátria que noticia o momento em outubro de 1865. Segundo a notícia, Elvas foi a primeira cidade afetada pelo “terrível hospede”. Também se apelou à limpeza e remoção dos vários focos de infeção existentes em Guimarães. Para a década de sessenta não existe nenhuma indicação da existência da doença na cidade.

Seguem-se ainda outras invasões da cólera, de maior ou menor dimensão, nas décadas de 80 e de 90 do século XIX. Embora sem provocar vítimas na população vimaranense, a cólera foi tema presente na cidade. Por exemplo, em 1885, verificou-se a formação de uma comissão de socorros e a organização de procissões religiosas, invocando preces para que a doença não afetasse a cidade.

Como anteriormente referido, a cólera foi um mal de reduzido impacto para a população vimaranense, mas apesar disso, foi notória, desde a ocorrência do primeiro surto, a preocupação da Câmara Municipal na tomada de medidas sanitárias que visavam a limpeza e inspeção dos espaços públicos. Devido a propagação da doença na cidade de forma quase silenciosa, o usufruto dos momentos de lazer foi visível no período após a ocorrência de surtos da cólera. Grande parte deles de cariz religioso, exaltando-se preces para que a doença não mais voltasse à cidade. Além destas, foi notória a ocorrência de bailes privados, feiras e romarias.

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