Um espreitar despreocupado a sites de viagens na Internet mostra quase invariavelmente que os destinos paradisíacos incluem um ou mais dos elementos seguintes: praias de águas cristalinas, palmeiras debruçadas sobre areias brancas, cabanas no fim de promontórios, e rostos deleitados em corpos morenos estendidos em esteiras. Tais imagens traduzem a quimera coletiva de paraíso, e esconjuram tranquilidade, beleza, serenidade, e paz.
Não obstante poderem ainda existir no planeta algumas paragens que se ajustam a este cenário, a verdade é que os paraísos estão a rarear, e os que subsistem correm o risco de desaparecer pela ação humana. Este texto foi redigido no período pós-férias em muitas regiões do globo, em que milhões de pessoas interromperam as suas atividades laborais, ao mesmo tempo que se bateram recordes de temperatura em vários países europeus, que acelerou o degelo na Gronelândia, e em que a área total da floresta Amazónica recuou para mínimos históricos, depois dos incêndios colossais do Verão de 2019.
Durante os meses estivais na Europa o autor deste texto optou por viajar para o Hemisfério Sul, no âmbito de uma relação de cooperação com uma universidade na Nova Zelândia. Aproveitou uma semana de férias nesse período para visitar um pequeno país no Oceano Pacífico: Tonga.
O Reino de Tonga é um entre 14 países que compõem a Oceânia (mais 9 territórios dependentes), ao lado de outros desconhecidos, como Vanuatu, de alguns mais notórios, como as Fiji, e do gigante Austrália. São 170 ilhas, quarenta das quais desabitadas, e pouco mais de cem mil habitantes, com 70% a residir na ilha principal, Tongatapu. Nuku’alofa é a capital, e as vilas e aldeias distam entre si 4 a 7 quilómetros. São raras as casas fora dos agregados populacionais, nesta ilha de 260 Km2 (pouco maior que a ilha de São Jorge). Nas brochuras turísticas Tonga é o arquétipo do paraíso: praias deslumbrantes, palmeiras e cocos à distância de uma mão, e água do mar cristalina.
As brochuras não enganam: praias de areia branca sem gente, águas tépidas e relativamente tranquilas, e temperaturas amenas de dia e à noite. Mas os folhetos também não mostram tudo! Em primeiro lugar, porque a moderna conceção de paraíso está desajustada da realidade. E em segundo lugar, porque os problemas das sociedades hodiernas já chegaram a estas ilhas da Polinésia. O presente texto aborda o primeiro assunto, enquanto o segundo tema é tratado na Parte 2 deste díptico, em outubro.
No que concerne o primeiro aspeto, é difícil transmitir nesta redação a desagradável sensação de se chegar a um local em que boa parte das vias terrestres está em mau estado e as receções de rede móvel e Wifi nem sempre são as melhores. Acrescem outros predicativos aborrecidos: neste paraíso não existem quaisquer cadeias conhecidas de hotéis, de restaurantes ou de lojas; é muito reduzida a variedade de produtos nos mercados; os preços são elevados nos poucos restaurantes estrangeiros, que por sua vez apenas existem na capital; e tudo – mas absolutamente tudo, está encerrado ao domingo!
No resort a situação era ainda mais pungente: acesso por estrada não alcatroada e plena de buracos; bungalows com janelas semi-avariadas e impossíveis de fechar na totalidade, com cortinas que há muito deveriam ter sido reformadas; cozinha comum com condições higiénicas precárias; e falta de água (quente e fria) no primeiro dia, por avaria da bomba. Não julgue o leitor que a escolha deste resort a 20 quilómetros da capital foi imponderada; os valores de uma diária equiparavam-se a muitos outros existentes na ilha, o que ofereceu alguma garantia no momento da adjudicação da proposta oferecida pelo operador turístico.
O sentimento de arrependimento do primeiro dia foi gradualmente substituído por uma adaptação às condições, e depois por um encantamento pelo lugar. No resort a praia de 300 metros era disfrutada pelos poucos turistas, não porque fosse proibido o acesso público, mas porque realmente as praias na ilha tendem a ter pouca presença humana. O som constante do bater das ondas nas rochas, à noite, que entrava livre pelas janelas, embalava e sossegava, ao mesmo tempo que a brisa noturna mantinha a temperatura ideal para o repouso. Terminar um dia sem acesso à Internet, a apreciar o ocaso solar em toda a sua exuberância no horizonte, enquanto se bebe água de coco, é francamente revigorante. O entretenimento conferido pela azáfama de troca de conchas pelos caranguejos-eremita, principais habitantes da praia, substitui qualquer jogo eletrónico ou programa de TV (que de qualquer modo não existia nos bungalows). Ter que avançar devagar sobre o solo marítimo, para não pisar um coral afiado, tornou-se um excelente exercício de apreciação dos elementos. Descobrir que o domingo é usado para as pessoas se reunirem em comunidade nas igrejas, e usarem o resto do dia para visitar a família e conviverem entre si, relembra um Portugal de outros tempos, sem grandes superfícies comerciais e sem cem canais de TV. O culminar destas vivências deu-se no último dia, quando um grupo de baleias-corcunda passou ao largo da costa, com pelo menos um destes gigantes a saltar repetidamente fora de água, talvez a celebrar a vida. À conetividade no ciber espaço sobrepôs-se a conexão com a Natureza, sendo o processo acompanhado por uma desaceleração do tempo psicológico, uma focalização no aqui e agora, e um sentimento profundo de bem-estar e harmonia interior.
O Papalagui é um livro fascinante que celebra em 2020 um século sobre a sua primeira publicação. É uma coleção de reflexões reunidas por Erich Scheurmann, sobre a visita de um chefe Samoano (Samoa fica 900 quilómetros a norte de Tonga) à Europa de início do século XX. O chefe da ilha de Upolu questiona a lógica dos vários hábitos e contradições do papalagui (o homem branco). Três exemplos relatados por Scheurmann ilustram bem as antinomias observadas pelo chefe: 1) como é que é possível que sob a mesma cabana (prédio) vivam tantos papalagui ao mesmo tempo, e que todavia não falam nem se conhecem entre si? 2) Porque é que o papalagui se rodeia de centenas de objetos (haveres pessoais), sem dar um uso regular à maioria deles? 3) Porque é que o papalagui eleva o metal redondo e o papel forte (dinheiro) ao estatuto de divindade-mor, subalternando-lhe tudo, incluindo a comunidade, a família, e Deus?
Apesar de serem certamente muitas as diferenças entre Samoa de 1920 e Tonga de 2020, visitar o segundo permitiu equacionar se no balanço final e universal entre o que se ganhou e perdeu nos últimos cem anos, o resultado é realmente favorável ao papalagui. Temos mais casas e casas maiores, mas famílias menores; mais bens materiais, mas menos tempo; mais graus académicos, mas menos (bom) senso; melhor medicina, mas menos (bem) estar; e mais tecnologias de comunicação, mas comunicação de qualidade duvidosa. Mais preocupante: temos apenas um planeta, mas agimos como se tivéssemos muitos. Será caso para perguntar se o conhecimento que alcançámos no último século se traduz em mais sabedoria?
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